quinta-feira, 22 de outubro de 2015

UMA GLOSA DE S. JOÃO DA CRUZ

Glosa ao Divino

Sem arrimo e com arrimo,
Sem luz e às escuras andando,
Assim me vou atormentando.

Está minha alma desprendida
De toda a cousa criada,
E sobre si alevantada,
E numa saborosa vida,
Só em seu Deus arrimada.
Por tudo isso se dirá
A cousa que mais estimo,
Que minha alma se vê já
Sem arrimo e com arrimo.

Se de trevas padeço
Nesta vida mortal,
Não é tão grande meu mal,
Porque, se de luz careço,
Tenho vida celestial;
Porque o amor de tal vida,
Quanto mais se vai cegando,
Mais tem a alma rendida,
Sem luz e às escuras andando.

Faz tal obra o amor,
Desde que a ele vim,
Que, se há bem ou mal em mim,
Tudo o faz de um sabor,
E a alma transforma por fim;
E, em sua chama saborosa,
A qual em mim vou achando,
Ágil, sem deixar nenhuma cousa,
Assim me vou atormentando.

S. João da Cruz (n. 1542 em Fontiveros, perto de Ávila - m. 14 de Dezembro de 1591, Ubeda), in Os Mais Belos Poemas de S. João da Cruz, intr. & trad. Victor Oliveira Mateus, edição bilingue, Coisas de Ler, Outubro de 2002, pp. 111-113.

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