Poucos cineastas terão prestado tanta atenção ao conceito de
fé como o fez John Ford (n. 1894 – m. 1973). A fé move montanhas, é costume
dizer-se. Ford encarrega-se de provar o dito com inúmeras histórias do Velho
Oeste. Praticamente todos os seus westerns, marcados invariavelmente pelo
discurso efabulatório da religião, trazem para cima do palco essa força
poderosa alojada no coração dos crentes. Isso é evidente em filmes tais como Rio Grande (1950), The Searchers (1956) ou Cheyenne Autumn (1964), assim como na
trilogia da cavalaria composta por My Darling Clementine (1946), Fort Apache
(1948) e She Wore a Yellow Ribbon (1949). Não tanto em The Horse Soldiers
(1959) e The Man Who Shot Liberty Valance (1962), embora ambos assentem um
princípio de intercepção da fé com a acção política. Perante tal constelação,
cabe perguntar que lugar ocupa em tamanha cinematografia o menos popular Wagon
Master/A Caravana Perdida (1950)?
Pouco considerado pela crítica à época da sua exibição, foi
ganhando com o tempo o estatuto dos grandes clássicos. Ford faz-se valer de um
elenco assaz familiar, entre o qual se destacam Ward Bond no papel de pastor mórmon
e Ben Johnson no lugar de comerciante de cavalos convertido, pelo acaso, em
chefe de caravana. São actores assíduos na filmografia fordiana, tal como, em
papel mais secundário, Harry Carey Jr. A encantadora Joanne Dru também entra,
num papel muito mais ousado e ambíguo do aquele que lhe tinha sido oferecido em
She Wore a Yellow Ribbon (1949).
Wagon Master conta a história de um grupo de mórmones
em busca da terra prometida, um vale junto ao rio San Juan, território do Utah,
onde pretendem lançar para a eternidade as preciosas sementes que transportam
em carroças rudimentares. Elder Wiggs (Ward Bond) é o pastor que lidera o grupo,
socorrendo-se do viajado Travis Blue (Ben Johnson). Pelo caminho, encontrarão
atolados no meio do deserto um pequeno grupo de “actores” ambulantes. Na
realidade, a identidade das três ovelhas tresmalhadas não fica clara. As duas
mulheres comportam-se levianamente, o homem que entre elas mantém uma compostura
solene é o típico charlatão. São integrados na caravana, vindo a assumir a
relevância geralmente atribuída às almas convertidas.
Nada impedirá estes bons
e corajosos filhos do senhor de cumprirem o seu destino, nem o deserto tórrido,
nem a paisagem inóspita. Atravessam rios, vencem a sede, superam todos os obstáculos surgidos pelo caminho. Move-os a fé, mesmo quando abordados por um grupo de índios
Navajo resolvem com eles confraternizar num acampamento onde se abraçam e
dançam em torno de uma fogueira. Inferno não é palavrão. É geografia. — afirma,
a dada altura, uma das personagens. E será nessa geografia infernal que a fé providenciará
uma passagem para o paraíso, não sem antes a serpente ameaçar os bons errantes.
Os Clegg são uma família de foragidos que se intromete na caravana. Que melhor
disfarce para um grupo de criminosos, procurados por roubo e homicídio, do que
uma caravana de mórmones? Os cinco Clegg, liderados pelo tio Shiloh (nome
associado tanto a uma famigerada batalha da Guerra da Secessão, como a uma
antiga cidade hebraica), são tantos quantos os sentidos na vida humana
material. E nisto pode, quem queria, ver uma alusão simbólica à dimensão pecadora
do homem, o domínio da carne, da matéria, do corpo, por oposição à infinita,
una na diversidade, caravana de boas almas votadas aos desígnios do Senhor.
Wagon
Master é, neste sentido, um típico western fordiano, dedicado à propagação de
bons sentimentos com um espírito de missão verdadeiramente humanitário. Neste
caso, os bons são mórmones. E os maus são liderados por um tipo com nome
judaico. Coincidências.
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