sexta-feira, 6 de novembro de 2015

DA DIFICULDADE DA BELEZA


A beleza é difícil.

Queria ensaiar uma magia menor
com a consciência de que cada homem tem a sua porção de paraíso
mesmo nos lugares mais adversos.

Mas a minha adversidade é uma paisagem
povoada de medos e de cinzas.
Vejo morte e sofrimento lá longe
e o que me comove está mais perto e é inapreensível.

Penso naquele pátio medieval de uma aldeia da Beira Interior
onde ontem assisti ao prelúdio de uma noite de verão.
O poço negro dos céus. A hera baloiçando ao vento. O cortejo das estrelas.
Um rumor de insectos roendo os interstícios do silêncio.

Poderia enumerar todas as coisas que então preencheram os meus sentidos
e reduzir essa expressão de coisas que desfilam, recebem nomes,
a um falhanço sem limites.

Retomo a pedra fria em que estive sentado naquela noite.
Toco-a com o pensamento até à falaz eloquência da realidade.

Falhar é seguir, novamente, a estrada da atrocidade quotidiana.

Penso em Ungaretti nas trincheiras
recordando os seus rios: o Isonzo, o Nilo, etc.
Há uma fuga nesta indiferença.
São nobres os exemplos
e exemplar a responsabilidade do alheamento.

Vejo um campo devastado dentro de mim,
a torre da Canção erguendo-se sobre as ruínas da tranquilidade
que me cerca.

A beleza é difícil.

Procuro a noite e a solidão num pátio medieval.
Procuro na minha memória esta noite e essa solidão.
É preciso salvar o momento, penso.
E distante no tempo, um outro o salva:
um poeta nomeia os seus rios
numa frente de combate.
A morte envolve-o. Porém, ele assume a ventura da beleza.
Assina o seu rosto junto ao sofrimento.

Com o início desse conhecimento
escrevo: «A beleza é difícil. Pode derrubar-nos, entretanto.»


Luís Quintais (n. 1968), in A Imprecisa Melancolia (1995). «O crítico António Guerreiro considera ser possível reconhecer facilmente a poesia de Luís Quintais, logo a partir dos títulos, "por um tom, um estado de espírito, uma atmosfera susceptível de transitar de livro para livro", assumindo a sua poesia um "evidente carácter elegíaco". E talvez seja importante começar pelo título do primeiro dos volumes referenciados, com o objectivo de captar o sentido dessa melancolia, imprecisa, e de definir o contexto em que a podemos integrar. Num ensaio onde relaciona literatura e melancolia, Fernando Pinto do Amaral considera que esta se trata de "um estado de alma de vaga tristeza sem motivo a que podemos ligar o termo passividade". De entre os vários aspectos abordados nesse ensaio, destacaria a funda afinidade que, segundo Pinto do Amaral, liga melancolia e literatura. Na verdade, se "é fundamental a presença de uma imagem fantasmática para a criação do estado que leva à melancolia", deve também sublinhar-se que "ambas (escrita e melancolia) trabalham com imagens, insistindo em desejar o impossível"» (José Ricardo Nunes, in 9 Poetas para o Século XXI).

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