segunda-feira, 23 de novembro de 2015

ÊXTASE

Em toda a parte onde reinou a doutrina da espiritualidade pura as suas enchentes destruíram a força humana: ela ensinava a desprezar o corpo, a negligenciá-lo ou a atormentá-lo, e a atormentar e depreciar o próprio homem, por causa dos seus instintos; produziu espíritos sombrios, tensos, oprimidos que acreditavam conhecer a causa do seu sentimento de infortúnio e talvez o meio de o suprimir! «É no corpo que reside a infelicidade! Ele ainda se desenvolve demasiado!» - assim concluíam eles, enquanto o corpo protestava continuamente pelas suas dores contra os sucessivos ultrajes que lhe infligiam. Um hiper-nervosismo geral e crónico tornava-se então apanágio destes virtuosos espíritos puros: eles só conheciam o prazer sob a forma de êxtase e de outros fenómenos de demência, - e o auge do seu sistema era atingido quando o êxtase se tornava o objectivo supremo da vida e o critério permanente para condenar todas as coisas terrestres.


Friedrich Nietzsche, in Aurora, trad. Rui Magalhães, RÉS Editora, colecção substância, n.º 22, Setembro de 1977, pp. 37-38.

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