quinta-feira, 26 de novembro de 2015

"POSTAIZITOS ATREVIDOS"

José Pimentel Teixeira deixou neste post um comentário acintoso, acusando-me de demagogia e constatando, isso não lhe perdoarei, o óbvio: que não percebo nada do mundo. Quem perceba que atire a primeira pedra. De facto, não percebo nada do mundo em que vivo. É uma declaração de princípio, não é sequer uma confissão. E não tem absolutamente nada de demagógica. É assim mesmo. Não percebo nada, não consigo. Mais ou menos 10 anos a trocar galhardetes, salvo seja, permitem-nos tais extravagâncias. Fico sempre grato a quem me comenta com inquestionáveis fleuma e veemência (perfeitamente compatíveis em universo bloguístico). Permito-me, porém, contextualizar a origem dos "postaizitos atrevidos", advertindo, desde já, que terão continuidade. Ando a ler um livro sobre o Estado Islâmico repleto de informações, notas de rodapé, envios, o que me impeliu a consultar inúmeros sítios e a ver variadíssimos vídeos disponíveis no Youtube. Não me refiro ao marketing da violência de que o EI se serve para causar temor nuns e simpatia noutros, não me refiro à propaganda de terror com registos macabros de execuções várias. Refiro-me a peças jornalísticas, documentários sobre o quotidiano nesse tal Estado disseminado algures entre o Iraque e a Síria, mas, para mal de todos, cada vez mais presente nas nossas vidas. Afectado pela informação, porventura excessiva (não ajuda à saúde de ninguém olhar para o mundo), observava há dias Medina Carreira e o General Loureiro dos Santos num bate-papo entretido, moderado por Judite Sousa, acerca dos desenvolvimentos mais recentes em matéria de ameaça terrorista na Europa. Medina perguntava se não seria mais eficaz atirar sobre as filas de camiões com petróleo que sustentam os terroristas do que bombardear as cidades sírias, o General respondia-lhe aludindo a interesses subterrâneos e obscuros. Ao ouvi-los, ocorreram-me imensas imagens. Lembrei-me dos méritos da Realpolitik, da comitiva de 50 empresários portugueses de visita à Arábia Saudita há dois anos, com os nossos governantes de serviço, de dentadura branqueada, a pousarem para fotografias onde o fausto era evidente, lembrei-me do nosso ministro Machete com a mulher envolta num lençol, salvo erro, algures no Irão, lembrei-me de Muammar al-Gaddafi ao lado de José Sócrates antes de ter sido vítima de sinusite durante a Primavera Árabe, lembrei-me do que era discutir a invasão do Iraque na blogaria em 2003 e de como estávamos todos muito certos de que a verdade mentia naquela fotografia ridícula das Lajes, e lembrei-me do receio que temos de falar em vidas que podiam ter sido poupadas e que podem vir a ser poupadas se não cometermos os mesmos erros que foram cometidos no passado, embora já não me reste grande esperança, pois sempre que falamos no mundo com a ingenuidade de quem para ele olha declarando que não percebe nada o mais que podemos esperar é que nos julguem demagógicos. Mas, enfim, cumpro o meu simples papel de cidadão ao informar-me e ao espantar-me, na base dessa informação recolhida, com o quão banal é sobreviver no mundo entre destroços, no meio de ruínas, rodeado de lixo e de mortos e de destruição. Num dos documentários a que assisti recentemente, filmado em pleno território sírio dominado pelos criminosos do EI, o que mais me chocou foi a normalidade da vida quotidiana. O homem do talho, as crianças a brincar no rio, as escolas, o funcionamento dos tribunais, o comércio, a vida a rolar entre destroços com seres humanos decapitados na praça pública sob um mundo que rodava como roda quotidianamente o mundo. Não era a banalização do mal de que falava Hannah Arendt, era uma coisa diferente, mais perversa ainda, como se a psicose tivesse passado a lei e a psicopatia fosse ensinada nas escolas como o mais virtuoso dos padrões éticos e morais. A frase de Medina Carreira que escolhi para legendar os postais é sobre isso mesmo, sobre a relatividade das vidas perturbadas que me leva, como escrevi aqui, a questionar todos os dias, sempre que deixo a minha Beatriz na escola, como será o dia-a-dia de uma criança na Faixa de Gaza. E sempre que me questiono dou graças sei lá eu a quê por ter a sorte de ter nascido num país onde ainda é possível assistir ao meu Sporting disparar quatro torpedos em plena Moscovo, entre amigos, de mini na mão, a sorrir com restos de tremoços nos dentes. Preocupa-me tanto que sejamos obrigados a interromper o nosso modo de vida como me preocupa a insensibilidade que há muito vamos demonstrando ter, com a puta da Realpolitik, para com o modo de vida daqueles que, infortunadamente, têm de caminhar diariamente entre escombros. Talvez seja a isto que chamam o remorso do ocidental, uma espécie de sentimento de culpa herdado pela História. Ou então é apenas, como dizia Cesário Verde, O Sentimento Dum Ocidental (porventura demagógico):

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. 

4 comentários:

Anónimo disse...

Posar para a fotografia, caro Henrique, alguns pousam nas selfies, outros posam como passarões

hmbf disse...

Talvez estivessem a pausar. Obrigado.

Claudia Sousa Dias disse...

Tenho que divulgar este post. Obrigada, Henrique.

hmbf disse...

eu é que agradeço