José Pimentel Teixeira deixou neste post um comentário
acintoso, acusando-me de demagogia e constatando, isso não lhe perdoarei, o óbvio:
que não percebo nada do mundo. Quem perceba que atire a primeira pedra. De
facto, não percebo nada do mundo em que vivo. É uma declaração de princípio, não
é sequer uma confissão. E não tem absolutamente nada de demagógica. É assim
mesmo. Não percebo nada, não consigo. Mais ou menos 10 anos a trocar galhardetes, salvo seja,
permitem-nos tais extravagâncias. Fico sempre grato a quem me comenta com
inquestionáveis fleuma e veemência (perfeitamente compatíveis em universo
bloguístico). Permito-me, porém, contextualizar a origem dos "postaizitos
atrevidos", advertindo, desde já, que terão continuidade. Ando a ler um livro
sobre o Estado Islâmico repleto de informações, notas de rodapé, envios, o que
me impeliu a consultar inúmeros sítios e a ver variadíssimos vídeos disponíveis
no Youtube. Não me refiro ao marketing da violência de que o EI se serve para causar
temor nuns e simpatia noutros, não me refiro à propaganda de terror com
registos macabros de execuções várias. Refiro-me a peças jornalísticas,
documentários sobre o quotidiano nesse tal Estado disseminado algures entre o
Iraque e a Síria, mas, para mal de todos, cada vez mais presente nas nossas
vidas. Afectado pela informação, porventura excessiva (não ajuda à saúde de
ninguém olhar para o mundo), observava há dias Medina Carreira e o General Loureiro
dos Santos num bate-papo entretido, moderado por Judite Sousa, acerca dos
desenvolvimentos mais recentes em matéria de ameaça terrorista na Europa.
Medina perguntava se não seria mais eficaz atirar sobre as filas de camiões com
petróleo que sustentam os terroristas do que bombardear as cidades sírias, o
General respondia-lhe aludindo a interesses subterrâneos e obscuros. Ao
ouvi-los, ocorreram-me imensas imagens. Lembrei-me dos méritos da
Realpolitik, da comitiva de 50 empresários portugueses de visita à Arábia
Saudita há dois anos, com os nossos governantes de serviço, de dentadura
branqueada, a pousarem para fotografias onde o fausto era evidente, lembrei-me
do nosso ministro Machete com a mulher envolta num lençol, salvo erro, algures
no Irão, lembrei-me de Muammar al-Gaddafi ao lado de José Sócrates antes de ter
sido vítima de sinusite durante a Primavera Árabe, lembrei-me do que
era discutir a invasão do Iraque na blogaria em 2003 e de como estávamos todos muito
certos de que a verdade mentia naquela fotografia ridícula das Lajes, e
lembrei-me do receio que temos de falar em vidas que podiam ter sido poupadas e
que podem vir a ser poupadas se não cometermos os mesmos erros que foram
cometidos no passado, embora já não me reste grande esperança, pois sempre que
falamos no mundo com a ingenuidade de quem para ele olha declarando que não
percebe nada o mais que podemos esperar é que nos julguem demagógicos. Mas,
enfim, cumpro o meu simples papel de cidadão ao informar-me e ao espantar-me,
na base dessa informação recolhida, com o quão banal é sobreviver no mundo
entre destroços, no meio de ruínas, rodeado de lixo e de mortos e de destruição. Num
dos documentários a que assisti recentemente, filmado em pleno território sírio
dominado pelos criminosos do EI, o que mais me chocou foi a normalidade da vida
quotidiana. O homem do talho, as crianças a brincar no rio, as escolas, o
funcionamento dos tribunais, o comércio, a vida a rolar entre destroços com seres
humanos decapitados na praça pública sob um mundo que rodava como roda quotidianamente
o mundo. Não era a banalização do mal de que falava Hannah Arendt, era uma coisa diferente, mais perversa ainda, como se a psicose tivesse passado a lei e a psicopatia fosse ensinada nas escolas como o mais virtuoso dos padrões éticos e morais. A frase de Medina Carreira que escolhi para legendar os postais é
sobre isso mesmo, sobre a relatividade das vidas perturbadas que me leva, como
escrevi aqui, a questionar todos os dias, sempre que deixo a minha Beatriz na
escola, como será o dia-a-dia de uma criança na Faixa de Gaza. E sempre que me questiono dou graças sei lá eu a quê por ter a sorte de ter nascido num país onde ainda é possível assistir ao meu Sporting disparar quatro torpedos em plena Moscovo, entre amigos, de mini na mão, a sorrir com restos de tremoços nos dentes. Preocupa-me
tanto que sejamos obrigados a interromper o nosso modo de vida como me preocupa
a insensibilidade que há muito vamos demonstrando ter, com a puta da Realpolitik,
para com o modo de vida daqueles que, infortunadamente, têm de caminhar
diariamente entre escombros. Talvez seja a isto que chamam o remorso do
ocidental, uma espécie de sentimento de culpa herdado pela História. Ou então é
apenas, como dizia Cesário Verde, O Sentimento Dum Ocidental (porventura demagógico):
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
4 comentários:
Posar para a fotografia, caro Henrique, alguns pousam nas selfies, outros posam como passarões
Talvez estivessem a pausar. Obrigado.
Tenho que divulgar este post. Obrigada, Henrique.
eu é que agradeço
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