2015 ficará inevitavelmente na nossa memória colectiva como
o ano dos atentados em Paris, capital da revolução que se mantém até hoje como
uma espécie de embrião do Ocidente secular. Ainda mal tínhamos digerido os
excessos da passagem de ano, fomos brutalmente surpreendidos pelo massacre na
redacção do jornal satírico Charlie Hebdo. Talvez por ingenuidade ou, quem
sabe, por puro desconhecimento, houve quem encolhesse os ombros perante a notícia,
como se já estivesse à espera, como se houvesse uma qualquer relação de causa e
efeito que justificasse o atentado face à blasfémia cultivada pelo jornal. Não
havia, não podia haver. Quem estivesse minimamente a par do modus operandi dos
facínoras do Estado Islâmico sabia que o que aconteceu no Charlie Hebdo estava,
em termos políticos e morais, ao nível do que havia acontecido no World Trade Center.
Nenhum dos caricaturistas executados era mais ou menos inocente do que as 1344 vítimas
das Torres. Podemos dizer exactamente o mesmo acerca daqueles que, mais
recentemente, perderam a vida junto ao Stade de France, no Bataclan Café, na
rue Charonne ou junto ao canal Saint-Martin. Mais de 100 mortos cujo crime era
estarem a viver as suas vidas, uns trabalhando, outros divertindo-se. Portanto,
para os simpatizantes do Estado Islâmico, qualquer indivíduo que não se reconheça
na leitura do Islão que pretendem impor ao mundo é um alvo a abater. Importa
ter consciência disso, sobretudo para nos pormos a salvo de leituras
ora generalistas (todo o Islão é mau), ora relativistas (alguns estavam a
pedi-las), que em nada contribuem para uma perspectiva minimamente esclarecida
acerca dos intentos que motivam o jihadismo do califado liderado por Abu Bakr
al-Baghdadi. Um livro como este Estado Islâmico: Estado de Terror (Vogais,
Abril de 2015) ajuda ao esclarecimento, quer pela boa organização temática que
apresenta, quer pelas múltiplas referências e envios que proporciona, quer
ainda pela vasta informação que faculta, com dados cronológicos, um glossário
pertinente, um fertilíssimo apêndice com breves resenhas históricas do islamismo
e das suas lutas, com abundantes notas de rodapé que tanto esclarecem como
justificam as afirmações proferidas mediante a denúncia das fontes. As
investigações de Jessica Stern no domínio da guerra psicológica são
fundamentais para percebermos o que devemos e não devemos fazer: «O terror pode
fazer-nos ripostar contra o inimigo errado, pelas razões erradas, ou ambos
(como foi o caso da invasão do Iraque, em 2003). Queremos travar a guerra, não
só ao terrorismo como também ao terror, para acabar com o sentimento de sermos
injustamente atacados ou incapazes de proteger os inocentes. Queremos fazer
guerra ao Mal. Todavia, por vezes, o efeito da nossa reação é precisamente
aquilo que queríamos impedir — mais terroristas e mais ataques, espalhando-se
de forma mais vasta pelo mundo» (p. 234). Os autores não se afastam, portanto,
de uma leitura que considera a invasão do Iraque como o princípio da disseminação
do inimigo que hoje o mundo secularizado enfrenta, alertando para os erros de uma
resposta que apenas servirá o discurso psicopata do assassino que se coloca no
lugar de vítima para justificar as suas acções. Como combater, então, o Mal sem
voltar a resvalar em efeitos perversos? J. M. Berger, especializado nos modos
de comunicação e propaganda do jihadismo internacional, afirma que «Em vez de
tentar deslocar o EI com uma força externa, devíamos considerar esforços para
reduzir a sua capacidade de atrair combatentes, propaganda e dinheiro para
dentro e para fora das regiões que controla, enfraquecendo a sua capacidade de
usar a força bruta e a violência extrema para manter a população local sob
controlo. Isto também obrigaria o Estado Islâmico a fracassar com base nas suas
próprias ações, em vez de ser removido por forasteiros, o que a longo prazo
faria mais para desacreditar futuros esforços na construção da nação jihadista»
(pp. 277-278). Ora, esta proposta parece situar-se nos antípodas da atitude que
dá forma às decisões dos nossos governantes, sempre muito preocupados com a
popularidade junto das suas populações amedrontadas. Em vez de um combate
inteligente, constatamos um medir de forças contraproducente. Atirar bombas
sobre a Síria e sobre o Iraque e sobre o território dominado pelo EI, falando
de alvos estratégicos, não se afigura a mais inteligente das medidas, tal como
no passado não foi muito inteligente treinar militarmente os grandes inspiradores
da al-Qaeda ou invadir o Iraque sob falsos pretextos. Não deixa de ser curioso
que al-Baghdadi, como outras fontes de inspiração do Estado Islâmico do Iraque
e da Síria, tenha estado detido em Camp Bucca aquando da invasão norte-americana
no Iraque. As prisões norte-americanas foram, em parte, universidades do terror
para estes filósofos do islamismo radical, facto que não pode deixar de nos
perturbar quando constatamos que «A visão da al-Qaeda é — muitas vezes
explicitamente — niilista. O Estado Islâmico, apesar de toda a sua barbárie, é
simultaneamente mais pragmático e mais utópico. Lado a lado com a sua tremenda
capacidade de destruição, está a vontade de construir» (p. 100). E a verdade é
que, para os autores do livro, já conseguiram construir um Estado, ainda que não
reconhecido internacionalmente, o que é, apesar da desconsideração ocidental,
uma base de sustento tremendamente difícil de aniquilar. O ambiente é, sem dúvida,
de Terceira Guerra Mundial. Pretender escamotear esta realidade quando ela está
tão próxima de nós talvez não seja a melhor das opções.
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