sábado, 12 de dezembro de 2015

ESTADO DE TERROR

2015 ficará inevitavelmente na nossa memória colectiva como o ano dos atentados em Paris, capital da revolução que se mantém até hoje como uma espécie de embrião do Ocidente secular. Ainda mal tínhamos digerido os excessos da passagem de ano, fomos brutalmente surpreendidos pelo massacre na redacção do jornal satírico Charlie Hebdo. Talvez por ingenuidade ou, quem sabe, por puro desconhecimento, houve quem encolhesse os ombros perante a notícia, como se já estivesse à espera, como se houvesse uma qualquer relação de causa e efeito que justificasse o atentado face à blasfémia cultivada pelo jornal. Não havia, não podia haver. Quem estivesse minimamente a par do modus operandi dos facínoras do Estado Islâmico sabia que o que aconteceu no Charlie Hebdo estava, em termos políticos e morais, ao nível do que havia acontecido no World Trade Center. Nenhum dos caricaturistas executados era mais ou menos inocente do que as 1344 vítimas das Torres. Podemos dizer exactamente o mesmo acerca daqueles que, mais recentemente, perderam a vida junto ao Stade de France, no Bataclan Café, na rue Charonne ou junto ao canal Saint-Martin. Mais de 100 mortos cujo crime era estarem a viver as suas vidas, uns trabalhando, outros divertindo-se. Portanto, para os simpatizantes do Estado Islâmico, qualquer indivíduo que não se reconheça na leitura do Islão que pretendem impor ao mundo é um alvo a abater. Importa ter consciência disso, sobretudo para nos pormos a salvo de leituras ora generalistas (todo o Islão é mau), ora relativistas (alguns estavam a pedi-las), que em nada contribuem para uma perspectiva minimamente esclarecida acerca dos intentos que motivam o jihadismo do califado liderado por Abu Bakr al-Baghdadi. Um livro como este Estado Islâmico: Estado de Terror (Vogais, Abril de 2015) ajuda ao esclarecimento, quer pela boa organização temática que apresenta, quer pelas múltiplas referências e envios que proporciona, quer ainda pela vasta informação que faculta, com dados cronológicos, um glossário pertinente, um fertilíssimo apêndice com breves resenhas históricas do islamismo e das suas lutas, com abundantes notas de rodapé que tanto esclarecem como justificam as afirmações proferidas mediante a denúncia das fontes. As investigações de Jessica Stern no domínio da guerra psicológica são fundamentais para percebermos o que devemos e não devemos fazer: «O terror pode fazer-nos ripostar contra o inimigo errado, pelas razões erradas, ou ambos (como foi o caso da invasão do Iraque, em 2003). Queremos travar a guerra, não só ao terrorismo como também ao terror, para acabar com o sentimento de sermos injustamente atacados ou incapazes de proteger os inocentes. Queremos fazer guerra ao Mal. Todavia, por vezes, o efeito da nossa reação é precisamente aquilo que queríamos impedir — mais terroristas e mais ataques, espalhando-se de forma mais vasta pelo mundo» (p. 234). Os autores não se afastam, portanto, de uma leitura que considera a invasão do Iraque como o princípio da disseminação do inimigo que hoje o mundo secularizado enfrenta, alertando para os erros de uma resposta que apenas servirá o discurso psicopata do assassino que se coloca no lugar de vítima para justificar as suas acções. Como combater, então, o Mal sem voltar a resvalar em efeitos perversos? J. M. Berger, especializado nos modos de comunicação e propaganda do jihadismo internacional, afirma que «Em vez de tentar deslocar o EI com uma força externa, devíamos considerar esforços para reduzir a sua capacidade de atrair combatentes, propaganda e dinheiro para dentro e para fora das regiões que controla, enfraquecendo a sua capacidade de usar a força bruta e a violência extrema para manter a população local sob controlo. Isto também obrigaria o Estado Islâmico a fracassar com base nas suas próprias ações, em vez de ser removido por forasteiros, o que a longo prazo faria mais para desacreditar futuros esforços na construção da nação jihadista» (pp. 277-278). Ora, esta proposta parece situar-se nos antípodas da atitude que dá forma às decisões dos nossos governantes, sempre muito preocupados com a popularidade junto das suas populações amedrontadas. Em vez de um combate inteligente, constatamos um medir de forças contraproducente. Atirar bombas sobre a Síria e sobre o Iraque e sobre o território dominado pelo EI, falando de alvos estratégicos, não se afigura a mais inteligente das medidas, tal como no passado não foi muito inteligente treinar militarmente os grandes inspiradores da al-Qaeda ou invadir o Iraque sob falsos pretextos. Não deixa de ser curioso que al-Baghdadi, como outras fontes de inspiração do Estado Islâmico do Iraque e da Síria, tenha estado detido em Camp Bucca aquando da invasão norte-americana no Iraque. As prisões norte-americanas foram, em parte, universidades do terror para estes filósofos do islamismo radical, facto que não pode deixar de nos perturbar quando constatamos que «A visão da al-Qaeda é — muitas vezes explicitamente — niilista. O Estado Islâmico, apesar de toda a sua barbárie, é simultaneamente mais pragmático e mais utópico. Lado a lado com a sua tremenda capacidade de destruição, está a vontade de construir» (p. 100). E a verdade é que, para os autores do livro, já conseguiram construir um Estado, ainda que não reconhecido internacionalmente, o que é, apesar da desconsideração ocidental, uma base de sustento tremendamente difícil de aniquilar. O ambiente é, sem dúvida, de Terceira Guerra Mundial. Pretender escamotear esta realidade quando ela está tão próxima de nós talvez não seja a melhor das opções. 

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