quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

C DE CULINÁRIA

Vai fazer três meses, referi-me aqui ao nobre proveito alimentício da ficção. Partilhei alguns exemplos da culinária que podemos encontrar entre as histórias que vamos lendo. Deparei-me, entretanto, com um outro tipo de culinária, de tipo nonsense, para usar a terminologia adoptada pelo grande Edward Lear. No livro Jacobo e Outras Histórias (1981), Teresa Veiga incluiu três textos intitulados de Culinária 1, Culinária 2 e Culinária 3. São textos eivados de ironia e com um tom absurdo que não destoa na sua escrita lúcida, embora perversa. No primeiro deles fala-nos de pão fresco e dos seus paradoxais adoradores: «O verdadeiro adorador de pão fresco (e por aqui se vê como a mente humana é cheia de contradições) leva o requinte ao ponto de não desaproveitar nenhuma porção da fornada da véspera». No segundo, porventura o menos interessante, fala-nos de bogas e da fixação do seu tio Alfredo, que azucrinava a tia Zizi com o facto de as bogas serem peixe de água doce. Não interessa revelar como a tia Zizi se vingou do chato tio Alfredo e da sua desgraçada fome de coelho, mas podemos partilhar o terceiro e mais curto dos textos:

CULINÁRIA 3

   «Bom dia, senhoras donas de casa. Hoje vou dar-lhes uma receita muito simples que me foi sugerida por uma pessoa, chamemos-lhe assim, modesta, muito modesta… Isto é para não dizerem que só dou receitas caras.
   A coisa tem a sua piada. Quando cheguei à varanda da minha casa para me despedir do meu marido que ia para o aeroporto no nosso BMW, reparei numa velha sentada a uns metros da minha porta, em frente do gradeamento do jardim, a devorar, reparem, a devorar o conteúdo de uma tigela que me pareceu ser um soufflé muito leve. Ora todas sabem como eu sou perdida por receitas novas… Além disso a velhota parecia maluca com o petisco. No fim do repasto lambeu a tigela, desculpem que o diga mas é verdade, lambeu a tigela e deu um fenomenal, com a vossa licença, um fenomenal arroto de satisfação. Antes que se fosse embora chamei-a da varanda, ela, coitada, lá entrou com muita cerimónia para a cozinha e depois de muito espremida, mal se percebia o que dizia, consegui enfim saber a receita.
   Agora atenção, preparem os vossos lápis e cadernos…
   Compram-se cem gramas de toucinho rançoso, duzentos gramas de carolos de milho e escolhem-se uns talos de couve que convém serem muito secos. Esmaga-se tudo debaixo de uma pedra, deita-se um fiozinho de água, bate-se com as mãos até engrossar e está pronto para ser comido, frio ou quente. Garanto-lhes que é delicioso como acompanhamento de um frango aux champignons.
   Escrevam-me a dizer se apreciaram. E por hoje é tudo. Chauzinho!»

Quem tenha lido ou simplesmente folheado, por mera curiosidade, o injustamente mal afamado Livro de São Cipriano sabe o quanto são úteis estas receitas em tempos de indigência. Oremos para que nunca cheguemos aos extremos propostos por Jonathan Swift em Uma Proposta Modesta, texto incluído por André Breton, muitos anos depois de ter sido originalmente confeccionado, na sua Antologia do Humor Negro, talvez por não ter o surrealista percebido que nesse texto havia tudo menos humor. Escrito em 1729, com meia Irlanda a definhar de f-o-m-e!, a proposta de Swift revela um verdadeiro sentido pragmático da sobrevivência:

   Irei agora, portanto, propor humildemente as minhas próprias reflexões, que espero não sejam susceptíveis da menor oposição.
   Tendo-me sido assegurado, por um americano muito sábio, em Londres, que uma criança saudável e bem alimentada é, com um ano de idade, uma comida deliciosa, nutriente e completa, seja estufada, grelhada, assada ou cozia; e não tenho dúvidas de que poderá ser igualmente servida em fricassé ou guisada.
   Assim, ofereço humildemente à consideração pública que, das cento e vinte mil crianças já contadas, vinte mil podem ser reservadas para procriação, das quais apenas uma quarta parte serão machos; o que é mais do que permitimos às ovelhas, gado bovino ou suínos; e a minha justificação é que estas crianças raramente são fruto do casamento, uma circunstância não muito observada pelos nossos selvagens; portanto um macho será suficiente para cobrir quatro fêmeas. Que as restantes cem mil, com um ano de idade, sejam oferecidas para venda a pessoas de qualidade e fortuna por todo o reino; sempre advertindo a mãe para que as deixe mamar profusamente no último mês, de modo a torná-las rechonchudas e gordas para uma boa mesa. Uma criança comporá dois pratos para uma refeição de amigos; e quando a família jantar sozinha, os quartos anteriores ou posteriores fornecerão um prato razoável e, temperado com um pouco de pimenta ou sal, ainda fará um bom cozido ao quarto dia, especialmente no Inverno.

Por falar em fricassé, quem soube antever-se transformado em refinada iguaria foi o padre Jean Meslier, contemporâneo de Swift, que nas suas saudosas memórias deixou à humanidade a seguinte premonição:

   Que os padres, que os pregadores, que os doutores e que todos os que propagam mentiras, esses erros e essas imposturas se escandalizem com isso e se zanguem o que quiserem depois da minha morte. Que me tratem então, se lhes apetecer, de ímpio, de apóstata, de blasfemo e de ateu. Que profiram contra mim nessa altura as injúrias e as maldições que quiserem. Isso não me perturba nada, pois não me provocará a menor inquietação. De igual modo, que façam nessa altura do meu corpo tudo o que quiserem. Que o despedacem, que o cortem aos bocados, que o assem ou o façam de fricassé, e que o comam mesmo, se lhes apetecer, com o molho que quiserem, pouco me rala.

A mesma atitude não teve Herman Melville, o que se compreende e aceita, quando vivinho da silva se achou entre canibais numa ilha isolada. Tivesse nascido uns séculos antes, poderíamos supor ter sido ele o americano com quem Swift falou. Mas só um milagre no tempo o permitiria. Ainda assim, no romance de estreia Taipi«a palavra «Taipi», no dialecto marquesano, significa aquele que gosta de carne humana» — deixou-nos um relato vivo dos seus anfitriões numa ilha do Pacífico. Ameaçado pela fome, foi sobrevivendo à base de sementes, goiabas e fruta-pão, até ter descoberto várias mistelas com cocos e, mais tarde, carne de leitão. O canibalismo é abordado mais de um ponto de vista sociológico do que gastronómico, mas são inúmeras as receitas proveitosas que podemos recolher nesse belo livro de estreia. Entre elas, até pela simplicidade, a minha preferida é a de peixe cru:

   Lamento relatar um facto muito desagradável, mas os habitantes de Taipi tinham o hábito de devorar o peixe do mesmo modo que um ser civilizado come um rábano e sem preparação prévia. Comem-no cru: escamas, espinhas, guelras e toda a polpa. Seguram o peixe pela cauda, introduzem a cabeça na boca e o animal desaparece com uma rapidez que a princípio quase leva a pensar que o próprio se lançou inteiro pela garganta abaixo.

Nada disto é tão absurdo quanto Melville nos garantir que o seu amorzinho na ilha apesar de comer peixe cru como todos os seus conterrâneos, o fazia com modos muito civilizados. Ora, são precisamente esses modos britânicos que me remetem, mais uma vez, para o bom e velho Edward Lear, ao qual dediquei em tempos uma brevíssima nota de leitura. E depois de ter partilhado aqui uma das suas receitas nonsense, gostaria de terminar repetindo a faceta com uma saborosíssima receita para culinária doméstica:

PARA PREPARAR COSTELETAS MIGALHOSAS

Arranje algumas tiras de carne de vaca e depois de cortá-las em fatias minúsculas continue a cortá-las ainda mais pequenas, oito vezes ou talvez nove.
   Quando tudo estiver assim picado, escove tudo rapidamente com uma escova de fatos nova e mexa rápida e caprichosamente com uma colher de café ou uma concha de sopa.
   Deite tudo numa caçarola e coloque num local ao sol — digamos, no telhado de casa, se este estiver livre de pardais ou de outros pássaros — e deixe-a lá ficar durante cerca de uma semana.
   Ao fim desse tempo, acrescente um pouco de lavanda, algum óleo de amêndoa e umas tantas espinhas de arenque; depois cubra tudo com 4 galões de molho migalhoso clarificado, estando pronto para servir.
   Corte no feitio das costeletas normais e sirva numa toalha de mesa limpa ou num guardanapo.


Bibliografia sumária:

LEAR, Edward, Learicks, trad. (livre) de Célia Henriques com a supervisão literária de Vítor Silva Tavares, & etc, Lisboa, Março de 2005;
MELVILLE, Herman, Taipi, trad. Telma Costa, Editorial Teorema, Lisboa, Junho de 2001;
MESLIER, Jean, Memória, selecção e apresentação de Armand Farrachi, trad. Luís Leitão, Antígona – Editores Refractários, Lisboa, Janeiro de 2003;
SWIFT, Jonathan, Uma Proposta Modesta / Um Argumento contra a Abolição do Cristianismo, trad. Pedro Costa, ilustrações de Frederico Penteado, Alfabeto, s/l, Fevereiro de 2011;
VEIGA, Teresa, Jacobo e Outras Histórias, 1.ª edição – 1981, Biblioteca Editores Independentes, n.º 084, Lisboa, Junho de 2010.

2 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Da lista já foram deglutidos (salvo seja) Melville e Swift. Agora é procurar os outros.

hmbf disse...

O livrinho do Edward Lear é muito saboroso.