Vai fazer três meses, referi-me aqui ao nobre proveito
alimentício da ficção. Partilhei alguns exemplos da culinária que podemos
encontrar entre as histórias que vamos lendo. Deparei-me, entretanto, com um
outro tipo de culinária, de tipo nonsense, para usar a terminologia adoptada
pelo grande Edward Lear. No livro Jacobo e Outras Histórias (1981), Teresa
Veiga incluiu três textos intitulados de Culinária 1, Culinária 2 e Culinária
3. São textos eivados de ironia e com um tom absurdo que não destoa na sua
escrita lúcida, embora perversa. No primeiro deles fala-nos de pão fresco e dos
seus paradoxais adoradores: «O verdadeiro adorador de pão fresco (e por aqui se
vê como a mente humana é cheia de contradições) leva o requinte ao ponto de não
desaproveitar nenhuma porção da fornada da véspera». No segundo, porventura o
menos interessante, fala-nos de bogas e da fixação do seu tio Alfredo, que
azucrinava a tia Zizi com o facto de as bogas serem peixe de água doce. Não
interessa revelar como a tia Zizi se vingou do chato tio Alfredo e da sua
desgraçada fome de coelho, mas podemos partilhar o terceiro e mais curto dos
textos:
CULINÁRIA 3
«Bom dia, senhoras
donas de casa. Hoje vou dar-lhes uma receita muito simples que me foi sugerida
por uma pessoa, chamemos-lhe assim, modesta, muito modesta… Isto é para não
dizerem que só dou receitas caras.
A coisa tem a sua
piada. Quando cheguei à varanda da minha casa para me despedir do meu marido
que ia para o aeroporto no nosso BMW, reparei numa velha sentada a uns metros
da minha porta, em frente do gradeamento do jardim, a devorar, reparem, a
devorar o conteúdo de uma tigela que me pareceu ser um soufflé muito leve. Ora
todas sabem como eu sou perdida por receitas novas… Além disso a velhota
parecia maluca com o petisco. No fim do repasto lambeu a tigela, desculpem que
o diga mas é verdade, lambeu a tigela e deu um fenomenal, com a vossa licença,
um fenomenal arroto de satisfação. Antes que se fosse embora chamei-a da
varanda, ela, coitada, lá entrou com muita cerimónia para a cozinha e depois de
muito espremida, mal se percebia o que dizia, consegui enfim saber a receita.
Agora atenção,
preparem os vossos lápis e cadernos…
Compram-se cem
gramas de toucinho rançoso, duzentos gramas de carolos de milho e escolhem-se
uns talos de couve que convém serem muito secos. Esmaga-se tudo debaixo de uma
pedra, deita-se um fiozinho de água, bate-se com as mãos até engrossar e está
pronto para ser comido, frio ou quente. Garanto-lhes que é delicioso como
acompanhamento de um frango aux champignons.
Escrevam-me a dizer
se apreciaram. E por hoje é tudo. Chauzinho!»
Quem tenha lido ou simplesmente folheado, por mera
curiosidade, o injustamente mal afamado Livro de São Cipriano sabe o quanto são
úteis estas receitas em tempos de indigência. Oremos para que nunca cheguemos
aos extremos propostos por Jonathan Swift em Uma Proposta Modesta, texto incluído
por André Breton, muitos anos depois de ter sido originalmente confeccionado, na sua Antologia do
Humor Negro, talvez por não ter o surrealista percebido que nesse texto havia tudo menos
humor. Escrito em 1729, com meia Irlanda a definhar de f-o-m-e!, a
proposta de Swift revela um verdadeiro sentido pragmático da sobrevivência:
Irei agora,
portanto, propor humildemente as minhas próprias reflexões, que espero não
sejam susceptíveis da menor oposição.
Tendo-me sido
assegurado, por um americano muito sábio, em Londres, que uma criança saudável
e bem alimentada é, com um ano de idade, uma comida deliciosa, nutriente e
completa, seja estufada, grelhada, assada ou cozia; e não tenho dúvidas de que
poderá ser igualmente servida em fricassé ou guisada.
Assim, ofereço
humildemente à consideração pública que, das cento e vinte mil crianças já
contadas, vinte mil podem ser reservadas para procriação, das quais apenas uma
quarta parte serão machos; o que é mais do que permitimos às ovelhas, gado
bovino ou suínos; e a minha justificação é que estas crianças raramente são
fruto do casamento, uma circunstância não muito observada pelos nossos
selvagens; portanto um macho será suficiente para cobrir quatro fêmeas. Que as
restantes cem mil, com um ano de idade, sejam oferecidas para venda a pessoas
de qualidade e fortuna por todo o reino; sempre advertindo a mãe para que as
deixe mamar profusamente no último mês, de modo a torná-las rechonchudas e
gordas para uma boa mesa. Uma criança comporá dois pratos para uma refeição de
amigos; e quando a família jantar sozinha, os quartos anteriores ou posteriores
fornecerão um prato razoável e, temperado com um pouco de pimenta ou sal, ainda
fará um bom cozido ao quarto dia, especialmente no Inverno.
Por falar em fricassé, quem soube antever-se transformado em
refinada iguaria foi o padre Jean Meslier, contemporâneo de Swift, que
nas suas saudosas memórias deixou à humanidade a seguinte premonição:
Que os padres, que
os pregadores, que os doutores e que todos os que propagam mentiras, esses
erros e essas imposturas se escandalizem com isso e se zanguem o que quiserem
depois da minha morte. Que me tratem então, se lhes apetecer, de ímpio, de apóstata,
de blasfemo e de ateu. Que profiram contra mim nessa altura as injúrias e as
maldições que quiserem. Isso não me perturba nada, pois não me provocará a
menor inquietação. De igual modo, que façam nessa altura do meu corpo tudo o
que quiserem. Que o despedacem, que o cortem aos bocados, que o assem ou o
façam de fricassé, e que o comam mesmo, se lhes apetecer, com o molho que
quiserem, pouco me rala.
A mesma atitude não teve Herman Melville, o que se
compreende e aceita, quando vivinho da silva se achou entre canibais numa ilha
isolada. Tivesse nascido uns séculos antes, poderíamos supor ter sido ele o
americano com quem Swift falou. Mas só um milagre no tempo o permitiria. Ainda
assim, no romance de estreia Taipi — «a palavra «Taipi», no dialecto
marquesano, significa aquele que gosta de carne humana» — deixou-nos um relato
vivo dos seus anfitriões numa ilha do Pacífico. Ameaçado pela fome, foi
sobrevivendo à base de sementes, goiabas e fruta-pão, até ter descoberto várias mistelas
com cocos e, mais tarde, carne de leitão. O canibalismo é abordado mais de um
ponto de vista sociológico do que gastronómico, mas são inúmeras as receitas proveitosas que podemos recolher nesse belo livro de estreia. Entre elas, até pela simplicidade, a minha
preferida é a de peixe cru:
Lamento relatar um
facto muito desagradável, mas os habitantes de Taipi tinham o hábito de devorar
o peixe do mesmo modo que um ser civilizado come um rábano e sem preparação
prévia. Comem-no cru: escamas, espinhas, guelras e toda a polpa. Seguram o
peixe pela cauda, introduzem a cabeça na boca e o animal desaparece com uma
rapidez que a princípio quase leva a pensar que o próprio se lançou inteiro
pela garganta abaixo.
Nada disto é tão absurdo quanto Melville nos garantir que o
seu amorzinho na ilha apesar de comer peixe cru como todos os seus conterrâneos,
o fazia com modos muito civilizados. Ora, são precisamente esses modos
britânicos que me remetem, mais uma vez, para o bom e velho Edward Lear, ao
qual dediquei em tempos uma brevíssima nota de leitura. E depois de ter
partilhado aqui uma das suas receitas nonsense, gostaria de terminar repetindo a
faceta com uma saborosíssima receita para culinária doméstica:
PARA PREPARAR COSTELETAS MIGALHOSAS
Arranje algumas tiras de carne de vaca e depois de cortá-las
em fatias minúsculas continue a cortá-las ainda mais pequenas, oito vezes ou
talvez nove.
Quando tudo estiver
assim picado, escove tudo rapidamente com uma escova de fatos nova e mexa rápida
e caprichosamente com uma colher de café ou uma concha de sopa.
Deite tudo numa
caçarola e coloque num local ao sol — digamos, no telhado de casa, se este
estiver livre de pardais ou de outros pássaros — e deixe-a lá ficar durante
cerca de uma semana.
Ao fim desse tempo,
acrescente um pouco de lavanda, algum óleo de amêndoa e umas tantas espinhas de
arenque; depois cubra tudo com 4 galões de molho migalhoso clarificado, estando
pronto para servir.
Corte no feitio das
costeletas normais e sirva numa toalha de mesa limpa ou num guardanapo.
Bibliografia sumária:
LEAR,
Edward, Learicks, trad. (livre) de Célia Henriques com a supervisão
literária de Vítor Silva Tavares, & etc, Lisboa, Março de 2005;
MELVILLE, Herman, Taipi, trad. Telma Costa, Editorial
Teorema, Lisboa, Junho de 2001;
MESLIER, Jean, Memória, selecção e apresentação de Armand
Farrachi, trad. Luís Leitão, Antígona – Editores Refractários, Lisboa, Janeiro
de 2003;
SWIFT, Jonathan, Uma Proposta Modesta / Um Argumento contra
a Abolição do Cristianismo, trad. Pedro Costa, ilustrações de Frederico
Penteado, Alfabeto, s/l, Fevereiro de 2011;
VEIGA, Teresa, Jacobo e Outras Histórias, 1.ª edição – 1981,
Biblioteca Editores Independentes, n.º 084, Lisboa, Junho de 2010.
2 comentários:
Da lista já foram deglutidos (salvo seja) Melville e Swift. Agora é procurar os outros.
O livrinho do Edward Lear é muito saboroso.
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