Jamais poderia adivinhar, quando aqui deixei este
lembrete, que hoje teria de prestar-me a um pouco mais. É estranha esta coisa
de chorar a morte de um criador como se fosse um dos nossos. A obra, essa extensão
de infiltrações improváveis, toca-nos. Talvez por sabê-la interrompida lamentamos tanto a perda, talvez por ter ela se misturado com as nossas vidas,
talvez por nos ter acompanhado e através dela sabermos guiar-nos no tempo
lembrando factos, recordando lugares.
A obra de David Bowie acompanha-me há
muito, talvez desde que o single Let’s Dance (1983), tinha eu 9 anos, aterrou
lá por casa e rodava incessantemente no gira-discos (dantes era assim que se
dizia). Tonight (1984) foi o primeiro Long Play com residência fixa na colecção
de vinis. A partir daqui parti para a descoberta do passado, indo em busca,
igualmente, do trabalho de um excêntrico colaborador desses e de outros tempos: Iggy
Pop. Camaleões e iguanas, portanto, seriam as bases para uma descolagem em
busca de universos musicais cuja principal característica era a constância da
metamorfose, acompanhando trânsitos e transformações astrais.
Se em 84, com 10 anos, não me
cansei de ouvir Blue Jean, em 87 não me cansaria de escutar Never Let Me Down.
Hoje, passados todos estes anos e após tantas descobertas, olho para a década
de 1980 como estimulante do ponto de vista popular, mas nada que se compare em
termos criativos com os tesouros da década de 1970. O jovem de Brixton que
começou por tocar saxofone, assimilando os ensinamentos do jazz e da folk e adaptando-os ao rhythm’n’blues em voga na década de 1960, cultivava um
interesse desmesurado pelo teatro do absurdo. Almejou o primeiro sucesso
misturando tudo isso numa canção inspirada em 2001: A Space Odyssey (1968), a
obra-prima do realizador Stanley Kubrick. Space Oddity é uma das canções mais
conhecidas e tocadas de David Bowie, nela se conjugando tudo o que havia sido absorvido
até então: a viola acústica em registo folk, o aspecto teatral do intérprete,
os arranjos experimentais, o refrão rockeiro. Simplesmente perfeito. A partir
de então, foi sempre a subir. Até à lua, para lá de Marte, explorando
territórios musicais e teatrais capazes de reinventar sem ciclos, sempre em
linha ascendente, um percurso exemplar.
Já referi a colaboração com Iggy, mas
podemos referir as parecerias com Lou Reed (David Bowie foi um dos produtores
do magnífico Transformer, em 1972), com os Queen de Freddie Mercury em Under
Pressure (1981), ou com Mick Jagger (há quem diga que Angie, dos The Rolling
Stones, foi escrita a pensar em Angie Bowie, a primeira mulher de David) nesse megassucesso
intitulado Dancing In The Street (1985)… Influências declaradas encontrá-las-emos
em bandas tão diversas como Suede ou Smashing Pumpkins. Kurt Cobain não hesitou
em cantar uma versão de The Man Who Sold The World no derradeiro Unplugged dos
Nirvana, os Bauhaus gravaram uma versão magnífica de Ziggy Stardust em 1982. As
canções de David Bowie tinham esta particularidade, capazes que eram de agradar
tanto a góticos como a grungers.
Desbravar o legado de um músico destes é ir ao
encontro do diverso e do inesperado, é descobrir ou redescobrir infindáveis
ligações, elos, pontes entre margens distintas de uma mesma perspectiva. É
olhar o mundo através de um par de olhos assimétricos no rosto do mesmo homem.
Quando me mudei para Lisboa, em 1992, frequentava muito o Bairro Alto na companhia
de um grupo de amigos da terra. Abancávamos frequentemente nas Primas, onde havia
uma jukebox que nos sacava sucessivos mealheiros para oferecer ao ambiente uma
única canção: China Girl. Quando casei, as hostilidades foram abertas ao som de
Absolute Beginners. As canções de David Bowie têm-me acompanhado ao longo da
vida, são uma espécie de marcos a determinar fases, momentos, um estranho mas
pedagógico equilíbrio entre o excesso e a mesura. Inevitável, portanto,
prestar-lhe aqui homenagem, na esperança de que lá onde os mortos brilham se
reúna agora com o amigo Lou Reed e voltem a inquietar o mundo com beijos na
boca. Fique, enquanto lição, a rebeldia:
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