Incomparavelmente mais conhecido pelas canções, David Robert
Jones foi, desde muito cedo, um amante dos palcos. Actor intermitente,
inclinou-se para a representação quando, ainda no início da carreira musical,
na década de 1960, encalhou nos primeiros fracassos. Os acidentes
ofereceram-lhe o talento da metamorfose, uma capacidade incomparável de se
recriar, de produzir personagens e de interpretá-las. O contacto com o mímico Lindsay
Kemp espoletou o gosto pelo absurdo e pelo grotesco: «Fez-me compreender que se
pode experimentar com as artes e correr riscos que não se correm na vida real».
Esta compreensão foi aplicada e desenvolvida em espectáculos onde a música era
a componente primária, mas não deixou de ser trabalhada no ambiente
laboratorial dos teatros. Em 1967, estreia-se como membro da
Lindsay Kemp Troupe em Pierrot in Turquoise. É revê-lo aqui. Interessado no
budismo por esses tempos, distanciava-se da mundanidade exigente do universo
pop “esquecendo-se” de compromissos vários. Refugiava-se num mosteiro situado
na Escócia e deixava que sobre si a especulação aguçasse o desejo. A máscara de
Pierrot seria reencarnada ao longo da vida, com retoques inusitados onde por
vezes pareciam misturados num mesmo rosto Pierrot e Arlequim. Parece ser uma
das características fundamentais das personagens encarnadas por Bowie,
nomeadamente a mais famosa de todas, engendrada na canção Unwashed &
Somewhat Slightly Dazed, a segunda do álbum conhecido como Space Oddity (1969),
e subsequentemente desenvolvida em The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the
Spiders from Mars (1972). Entre ambos os ábuns, cresce o actor no centro de um
desassossegado conflito que opõe os apelos da noite e a cintilação budista. Os
apelos da noite parecem ter sido mais fortes, tornando-se Ziggy Stardust e Aladdin Sane
representações icónicas do chamado glitter rock. A dimensão alienígena misturava-se
com uma imagem sexualmente ambígua, uma alucinação hermafrodita que elevava a
mitologia a territórios inexplorados quando o homem acabara de aterrar na lua. Esta
face andrógina e futurista, eminentemente teatral, ajuda-nos a não estranhar o
papel principal no filme The Man Who Fell to Earth (1976), de Nicolas Roeg (ver
trailer aqui). O freak tinha agora direito a um manifesto cinematográfico,
marcante, sobretudo, enquanto metáfora de uma sensibilidade existencial que a
obra vinha perscrutando desde os primeiros passos. Enquanto actor propriamente
dito, se bem que seja difícil destrinçar na sua carreira as fronteiras que
delimitam os campos, o apogeu deu-se alguns anos depois dos primeiros filmes
com o papel principal em The Elephant Man, a peça de Bernard Pomerance: «O
trabalho de Bowie na peça foi simplesmente notável, tendo batido o recorde de
bilheteira do Denver Centre of Performing Arts e permanecido longos meses
sempre com lotações esgotadas na Broadway». Mais notável ainda por se tratar de
um trabalho de representação que privava de qualquer tipo de caracterização a
personagem central, um homem com o corpo totalmente deformado. Diversas
participações em filmes, entre as quais podemos destacar o papel de Pôncio
Pilatos em The Last Temptation of Christ (1988), de Martin Scorsese, ou o papel
de Andy Warhol no belo Basquiat (1996), de Julian Schnabel, ou a figura central
do Major Jack Celliers no filme Merry Christmas Mr. Lawrence (1983), de Nagisa
Ôshima, com música de Ryuichi Sakamoto, não voltariam a fazer justiça ao Homem
Elefante da Broadway, mas permitiram a Bowie afirmar talentos que extravasam a área
da composição de canções. Nesse sentido, podemos vê-lo como um exemplar renascentista
na curva do milénio. Artista complexo, multifacetado, inquieto, provocador,
capaz de romper barreiras e de fazer da crise um autêntico paradigma criativo.
Sem comentários:
Enviar um comentário