segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

UM EXEMPLAR RENASCENTISTA

Incomparavelmente mais conhecido pelas canções, David Robert Jones foi, desde muito cedo, um amante dos palcos. Actor intermitente, inclinou-se para a representação quando, ainda no início da carreira musical, na década de 1960, encalhou nos primeiros fracassos. Os acidentes ofereceram-lhe o talento da metamorfose, uma capacidade incomparável de se recriar, de produzir personagens e de interpretá-las. O contacto com o mímico Lindsay Kemp espoletou o gosto pelo absurdo e pelo grotesco: «Fez-me compreender que se pode experimentar com as artes e correr riscos que não se correm na vida real». Esta compreensão foi aplicada e desenvolvida em espectáculos onde a música era a componente primária, mas não deixou de ser trabalhada no ambiente laboratorial dos teatros. Em 1967, estreia-se como membro da Lindsay Kemp Troupe em Pierrot in Turquoise. É revê-lo aqui. Interessado no budismo por esses tempos, distanciava-se da mundanidade exigente do universo pop “esquecendo-se” de compromissos vários. Refugiava-se num mosteiro situado na Escócia e deixava que sobre si a especulação aguçasse o desejo. A máscara de Pierrot seria reencarnada ao longo da vida, com retoques inusitados onde por vezes pareciam misturados num mesmo rosto Pierrot e Arlequim. Parece ser uma das características fundamentais das personagens encarnadas por Bowie, nomeadamente a mais famosa de todas, engendrada na canção Unwashed & Somewhat Slightly Dazed, a segunda do álbum conhecido como Space Oddity (1969), e subsequentemente desenvolvida em The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972). Entre ambos os ábuns, cresce o actor no centro de um desassossegado conflito que opõe os apelos da noite e a cintilação budista. Os apelos da noite parecem ter sido mais fortes, tornando-se Ziggy Stardust e Aladdin Sane representações icónicas do chamado glitter rock. A dimensão alienígena misturava-se com uma imagem sexualmente ambígua, uma alucinação hermafrodita que elevava a mitologia a territórios inexplorados quando o homem acabara de aterrar na lua. Esta face andrógina e futurista, eminentemente teatral, ajuda-nos a não estranhar o papel principal no filme The Man Who Fell to Earth (1976), de Nicolas Roeg (ver trailer aqui). O freak tinha agora direito a um manifesto cinematográfico, marcante, sobretudo, enquanto metáfora de uma sensibilidade existencial que a obra vinha perscrutando desde os primeiros passos. Enquanto actor propriamente dito, se bem que seja difícil destrinçar na sua carreira as fronteiras que delimitam os campos, o apogeu deu-se alguns anos depois dos primeiros filmes com o papel principal em The Elephant Man, a peça de Bernard Pomerance: «O trabalho de Bowie na peça foi simplesmente notável, tendo batido o recorde de bilheteira do Denver Centre of Performing Arts e permanecido longos meses sempre com lotações esgotadas na Broadway». Mais notável ainda por se tratar de um trabalho de representação que privava de qualquer tipo de caracterização a personagem central, um homem com o corpo totalmente deformado. Diversas participações em filmes, entre as quais podemos destacar o papel de Pôncio Pilatos em The Last Temptation of Christ (1988), de Martin Scorsese, ou o papel de Andy Warhol no belo Basquiat (1996), de Julian Schnabel, ou a figura central do Major Jack Celliers no filme Merry Christmas Mr. Lawrence (1983), de Nagisa Ôshima, com música de Ryuichi Sakamoto, não voltariam a fazer justiça ao Homem Elefante da Broadway, mas permitiram a Bowie afirmar talentos que extravasam a área da composição de canções. Nesse sentido, podemos vê-lo como um exemplar renascentista na curva do milénio. Artista complexo, multifacetado, inquieto, provocador, capaz de romper barreiras e de fazer da crise um autêntico paradigma criativo.

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