Se há característica que pode diferenciar a nossa época das
épocas que a precederam, então essa característica é uma tendencial aceleração
dos ritmos de vida. Tal aceleração acarreta consequências, sendo talvez a mais
visível uma percepção do tempo diferente da que pautou os ritmos no passado.
Aquilo a que alguém chamou o “império do efémero” é o reinado da desatenção, do
imediatismo, de uma natural incapacidade para assimilar tudo quanto vemos
porque tudo quanto vemos é muito e passa muito depressa. O que é notícia hoje,
amanhã deixará de ter interesse. O que nos choca agora, daqui a pouco ficará submerso
nos pantanais da futilidade. A história perspectiva-se com esforço, o ócio vive
sob ameaça, trazendo, por consequência, ameaças sobre o pensamento e sobre a
capacidade que cada indivíduo desenvolve para observar e analisar pausadamente
o mundo à sua volta.
Como entender Europa (Tinta-da-China, Dezembro de 2015), o
livro com que Rui Cóias (n. 1966) regressa à publicação após 10 anos de
“silêncio”, numa época assim? A pergunta justifica-se quando somos confrontados
com a exigência determinada pelo volume. O livro exige-nos tempo, pausas,
exige-nos uma disposição para reflectir e para contemplar cada vez mais ausentes da
epidérmica poesia contemporânea, por culpa, lá está, dos ritmos acelerados com
que preenchemos a vida (e não é também a poesia um reflexo da vida?). Exige-nos um entendimento sobre o que nele há de uno e
único, a cultura que nos unifica e contamina por misteriosos trilhos. Europa é
um livro exigente, não tanto pelo que nele se apresenta de novo (muito pouco),
como pela reorganização do que da poesia de Cóias já nos era conhecido.
Até porque nada informa o leitor sobre o facto, diga-se que
o grosso deste livro consiste num processo de reescrita e de reorganização dos
poemas anteriormente publicados nos livros A Função do Geógrafo (Quasi Edições,
Dezembro de 2000) e A Ordem do Mundo (idem, Setembro de 2005). Podemos
especular sobre a razão de ser desta opção, sendo provavelmente mais lógico
supor por detrás deste dispositivo uma concepção que o próprio autor terá da (sua)
poesia. À semelhança do que por vezes sucede com outros poetas, talvez Rui
Cóias seja autor de uma obra só (única, una). Nesse caso, a sua produção
poética resulta de uma reescrita do fôlego original, ao qual se vão anexando
novos fragmentos que com o passado estabeleçam uma unidade temática e formal.
Não obstante, não sendo exactamente novos, estes poemas, pela menos a sua
maioria, sofreu um processo de transformação de ordem sintáxica que lhes
confere renovadas respirações. Seria incorrecto falar de novos teores ou de
novas temáticas, mas não é indiferente mencionar uma reorganização, distribuída
por cinco conjuntos de poemas, das paisagens que conhecíamos dos livros
anteriores, agora em relação com outros textos, ao que julgo saber, nunca antes publicados em livro.
Entre esses destacam-se alguns poemas do quinto conjunto —
Doces lágrimas de guerra, Somme, 1916 — que têm por cenário uma das mais
sangrentas batalhas na história da humanidade, a Batalha do Somme, ocorrida em
1916 durante a Primeira Guerra Mundial. São poemas que acrescentam à cosmogonia
desenvolvida no passado um factor histórico perturbador, manifestando-se
através dele as cinzas de um continente afastado das premissas sobre as quais o
pensamento se desenvolveu em busca da misteriosa “ordem do mundo”. O sujeito
poético deambula pelas paisagens, capta-lhe as vozes, recebe sinais das ruínas
sobreviventes à completa extinção, recolhe vestígios, escuta as pedras com que se cruza
no caminho, deixa os monumentos falarem por si. Consciente de si: «Na verdade, esta é uma imagem da escrita literária que o mundo moderno coíbe e recusa, um vagaroso afastar de cortinas que deixa entrar a secreta e palustre candeia a gás em detrimento da faustosa e matutina lâmpada de tungsténio, o que para estes fins significa que o objecto importa muito menos do que o fosso da pergunta, uma vez que a resposta, seja qual for a língua em que está escrita ou a cal em que é caiada, deve ser constantemente corrigida e ilustrada e, portanto, expressa e interposta através da nossa pálida e fria presença no mundo» (p. 102). Este processo constante de indagação e de
procura, desde sempre presente na poesia de Rui Cóias, permite-lhe colher numa
certa tradição cultural, porventura de pendor romântico, os pontos cardeais que
orientam uma produção empenhada na compreensão do tempo a partir do que as representações
da paisagem podem acerca dele revelar.
Europa encerra com um ensaio intitulado O Fugaz Tremor dos
Campos, ilustrado por imagens que, à maneira do que outrora foi feito por um
autor como W. G. Sebald, permitem reencontrar um tempo só aparentemente
perdido, na medida em que esse tempo não é um tempo fenomenológico, sujeito às
descontinuidades da História, mas sim o tempo ontológico onde tudo se
interliga: «na essência, a ênfase de uma obra ou composição artística não
reside na experiência retórica, cega, da apreensão contingente, traduzida em
palavras rasas, articuladas de acordo com a obediência aos factos ou
convicções, mas, por contrário, na marca de uma corrosão, na incidência de um
vestígio cuja vista se restringe a partir do sulco da evocação, ou seja, a
partir das unidades que se encontram segmentadas pelo curso que as circunda em
torno do segredo» (p. 100). Altamente evocativa, esta poesia demarca-se, porém,
das práticas mais usuais na contemporaneidade pela aceitação de um mistério que
se sobrepõe à racionalidade. Mesmo no seu aspecto formal, com frases
extensíssimas desafiando a respiração da leitura, ela advém de uma reflexão e
de uma contemplação, ou talvez de uma reflexão contemplativa, sobre o gesto de
quem tanto acena à partida como à chegada, tornando assim perto o que parece
distante, ligando tudo numa misteriosa unidade:
DOCES LÁGRIMAS DE GUERRA
SOMME, 1916
7.
No Man’s Land
But many
there stood still
To face the
stark blank sky beyond the ridge
Knowing
their feet had come to the end of the world.
Wilfred Owen
Regimento de Manchester, 5.º Batalhão
Sambre-Oise Canal, Novembro, 1918
Agora que estamos sós, no gume que obedece ao eixo pelas
chamas,
saltemos sem escrúpulo para o vagão do pó da terra anónima,
pois as palavras da noite dissiparam-se, e o mapa aferroado
ao sol foi aberto.
Longas papoilas deitam-se juntas, despertam nos cerros de lã
púrpura, à tarde
galgamos o cume, corremos assim na gravilha das pastagens
com os pés tropeando, sem parar, como éguas malhadas.
Partimos, virados apenas a uma direcção, passamos por ela
cobrindo a cabeça, respirando ao largo cada momento que lá
chegara,
e sob o primeiro floco caído das lágrimas
que são para nós uma derradeira morte própria
vivemos como por entre o torpor da Primavera, da guerra e da
inocência
em que os homens predestinam o que, lentamente, escutam
pelos vales.
É um voo sibilante este profundo desígnio,
e também a voz em que marulha a janela de um véu de gerações
é a juventude como o cabelo solto das nossas mentes.
Porque o passado conduz-nos de uma oliveira erguida por
nossos pais,
e um dia lutamos na sombra para a abraçar,
e lutamos, folha após folha, ano após ano, rumo ao espinho
de outras derrotas.
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