domingo, 31 de janeiro de 2016

EUROPA

Se há característica que pode diferenciar a nossa época das épocas que a precederam, então essa característica é uma tendencial aceleração dos ritmos de vida. Tal aceleração acarreta consequências, sendo talvez a mais visível uma percepção do tempo diferente da que pautou os ritmos no passado. Aquilo a que alguém chamou o “império do efémero” é o reinado da desatenção, do imediatismo, de uma natural incapacidade para assimilar tudo quanto vemos porque tudo quanto vemos é muito e passa muito depressa. O que é notícia hoje, amanhã deixará de ter interesse. O que nos choca agora, daqui a pouco ficará submerso nos pantanais da futilidade. A história perspectiva-se com esforço, o ócio vive sob ameaça, trazendo, por consequência, ameaças sobre o pensamento e sobre a capacidade que cada indivíduo desenvolve para observar e analisar pausadamente o mundo à sua volta.
Como entender Europa (Tinta-da-China, Dezembro de 2015), o livro com que Rui Cóias (n. 1966) regressa à publicação após 10 anos de “silêncio”, numa época assim? A pergunta justifica-se quando somos confrontados com a exigência determinada pelo volume. O livro exige-nos tempo, pausas, exige-nos uma disposição para reflectir e para contemplar cada vez mais ausentes da epidérmica poesia contemporânea, por culpa, lá está, dos ritmos acelerados com que preenchemos a vida (e não é também a poesia um reflexo da vida?). Exige-nos um entendimento sobre o que nele há de uno e único, a cultura que nos unifica e contamina por misteriosos trilhos. Europa é um livro exigente, não tanto pelo que nele se apresenta de novo (muito pouco), como pela reorganização do que da poesia de Cóias já nos era conhecido.
Até porque nada informa o leitor sobre o facto, diga-se que o grosso deste livro consiste num processo de reescrita e de reorganização dos poemas anteriormente publicados nos livros A Função do Geógrafo (Quasi Edições, Dezembro de 2000) e A Ordem do Mundo (idem, Setembro de 2005). Podemos especular sobre a razão de ser desta opção, sendo provavelmente mais lógico supor por detrás deste dispositivo uma concepção que o próprio autor terá da (sua) poesia. À semelhança do que por vezes sucede com outros poetas, talvez Rui Cóias seja autor de uma obra só (única, una). Nesse caso, a sua produção poética resulta de uma reescrita do fôlego original, ao qual se vão anexando novos fragmentos que com o passado estabeleçam uma unidade temática e formal. Não obstante, não sendo exactamente novos, estes poemas, pela menos a sua maioria, sofreu um processo de transformação de ordem sintáxica que lhes confere renovadas respirações. Seria incorrecto falar de novos teores ou de novas temáticas, mas não é indiferente mencionar uma reorganização, distribuída por cinco conjuntos de poemas, das paisagens que conhecíamos dos livros anteriores, agora em relação com outros textos, ao que julgo saber, nunca antes publicados em livro.
Entre esses destacam-se alguns poemas do quinto conjunto — Doces lágrimas de guerra, Somme, 1916 — que têm por cenário uma das mais sangrentas batalhas na história da humanidade, a Batalha do Somme, ocorrida em 1916 durante a Primeira Guerra Mundial. São poemas que acrescentam à cosmogonia desenvolvida no passado um factor histórico perturbador, manifestando-se através dele as cinzas de um continente afastado das premissas sobre as quais o pensamento se desenvolveu em busca da misteriosa “ordem do mundo”. O sujeito poético deambula pelas paisagens, capta-lhe as vozes, recebe sinais das ruínas sobreviventes à completa extinção, recolhe vestígios, escuta as pedras com que se cruza no caminho, deixa os monumentos falarem por si. Consciente de si: «Na verdade, esta é uma imagem da escrita literária que o mundo moderno coíbe e recusa, um vagaroso afastar de cortinas que deixa entrar a secreta e palustre candeia a gás em detrimento da faustosa e matutina lâmpada de tungsténio, o que para estes fins significa que o objecto importa muito menos do que o fosso da pergunta, uma vez que a resposta, seja qual for a língua em que está escrita ou a cal em que é caiada, deve ser constantemente corrigida e ilustrada e, portanto, expressa e interposta através da nossa pálida e fria presença no mundo» (p. 102).  Este processo constante de indagação e de procura, desde sempre presente na poesia de Rui Cóias, permite-lhe colher numa certa tradição cultural, porventura de pendor romântico, os pontos cardeais que orientam uma produção empenhada na compreensão do tempo a partir do que as representações da paisagem podem acerca dele revelar.
Europa encerra com um ensaio intitulado O Fugaz Tremor dos Campos, ilustrado por imagens que, à maneira do que outrora foi feito por um autor como W. G. Sebald, permitem reencontrar um tempo só aparentemente perdido, na medida em que esse tempo não é um tempo fenomenológico, sujeito às descontinuidades da História, mas sim o tempo ontológico onde tudo se interliga: «na essência, a ênfase de uma obra ou composição artística não reside na experiência retórica, cega, da apreensão contingente, traduzida em palavras rasas, articuladas de acordo com a obediência aos factos ou convicções, mas, por contrário, na marca de uma corrosão, na incidência de um vestígio cuja vista se restringe a partir do sulco da evocação, ou seja, a partir das unidades que se encontram segmentadas pelo curso que as circunda em torno do segredo» (p. 100). Altamente evocativa, esta poesia demarca-se, porém, das práticas mais usuais na contemporaneidade pela aceitação de um mistério que se sobrepõe à racionalidade. Mesmo no seu aspecto formal, com frases extensíssimas desafiando a respiração da leitura, ela advém de uma reflexão e de uma contemplação, ou talvez de uma reflexão contemplativa, sobre o gesto de quem tanto acena à partida como à chegada, tornando assim perto o que parece distante, ligando tudo numa misteriosa unidade:

DOCES LÁGRIMAS DE GUERRA
SOMME, 1916

7.
No Man’s Land

But many there stood still
To face the stark blank sky beyond the ridge
Knowing their feet had come to the end of the world.
Wilfred Owen
Regimento de Manchester, 5.º Batalhão
Sambre-Oise Canal, Novembro, 1918


Agora que estamos sós, no gume que obedece ao eixo pelas chamas,
saltemos sem escrúpulo para o vagão do pó da terra anónima,
pois as palavras da noite dissiparam-se, e o mapa aferroado ao sol foi aberto.

Longas papoilas deitam-se juntas, despertam nos cerros de lã púrpura, à tarde
galgamos o cume, corremos assim na gravilha das pastagens
com os pés tropeando, sem parar, como éguas malhadas.

Partimos, virados apenas a uma direcção, passamos por ela
cobrindo a cabeça, respirando ao largo cada momento que lá chegara,
e sob o primeiro floco caído das lágrimas

que são para nós uma derradeira morte própria
vivemos como por entre o torpor da Primavera, da guerra e da inocência
em que os homens predestinam o que, lentamente, escutam pelos vales.

É um voo sibilante este profundo desígnio,
e também a voz em que marulha a janela de um véu de gerações
é a juventude como o cabelo solto das nossas mentes.

Porque o passado conduz-nos de uma oliveira erguida por nossos pais,
e um dia lutamos na sombra para a abraçar,
e lutamos, folha após folha, ano após ano, rumo ao espinho de outras derrotas. 

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