segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

TRIVIAL


Pouco a pouco nos diremos
não somos mais crianças,
de tudo quanto temos nada nos pertence;
sejamos, pois, sinceros.
Porquê a avareza
do teu coração
no dia a dia, no dia a dia,
porquê se eu não te prejudicaria nunca,
nunca, por nada,
nunca? Em nada, coisa
alguma?
Porquê o teu respeito se tornou
indelicadeza?
O equívoco de que te apercebeste
acaso converteu o teu afecto
em náusea
e a febre que me consumia
em palavras ridículas?
Pois bem: eu jamais teria imaginado
ser motivo de incómodo, quanto mais
de dano. Muito menos tornar-me
indesejável.
Mas entendo, entendo,
entendo que se não pode confundir o fim
com a despedida
— a penumbra não tem de ser fiel ao tempo
comovido.
Contudo, tenho de reconhecê-lo, ninguém
usou de más intenções, apesar da poeira deitada
nos olhos. O que tu não soubeste foi evitá-la,
pois nada te custava perguntar-me:
— Afligir-te-ia
se eu fora, de facto, apenas teu amigo,
como mo tens solicitado dia a dia, minuto
a minuto?
Olha a ave que não sabe
do voo.
Se, de igual modo, tivéramos ignorado
e com a mesma facilidade
o sentimento que nutríamos um pelo outro,
teriam sido bem menores as nossas dificuldades;
e, porventura,
tudo se teria esclarecido.
Mas demorámos muito. Enganámo-nos muito!
Demorámos tanto! Demorámos
uma insignificância!
Como cuidarei agora da minha cautela se, e já não
tendo de que me precaver, não sou capaz
ainda de dizer pouco me importa
se alguém vem ou não vem,
é-me indiferente que me telefonem
ou silenciem: sobrevive-se
a uma desgraça quanto mais a um pequeno
incómodo.
Se a solidão está comigo, não vou morrer
de espera.
Esquecerei, esquecerei, esquecerei,
acontece,
é o trivial, é o trivial
— é apenas
o trivial.


Eduarda Chiote (n. 1930), in Não Me Morras (2004). Nascida em Bragança, Eduarda Chiote estreou-se com Esquemas (1975). «Trata-se de uma obra que reflecte sobre a doença, a decomposição e a morte, o sacrifício e o suicídio, atestando o carácter radical do amor à vida. A linguagem utilizada por Eduarda Chiote é enxuta, contrária ao risco da falácia do lirismo ou mesmo da manipulação retórica» (Ana Marques Gastão, Diário de Notícias, 11 de Julho de 2004). «Seguindo esta «narrativa», atravessamos vários géneros e subgéneros: o lírico, o trágico, o elegíaco. Esta variedade de registos acompanha uma desmesura de sentimentos, mas com uma enorme consciência do jogo literário que encena, da «desmedida ficção» que narra. É assim que esta poesia se salva do «pathos» que a ameaça de todos os lados, ultrapassando uma difícil prova de resistência» (António Guerreiro, Expresso, 21 de Agosto de 2004). 

Sem comentários: