Em dia de namoros, recupero duas velhas histórias com
protagonistas diferentes. O primeiro é francês, chama-se Émile-Hortensius-Charles
Cros e nasceu a 1 de Outubro de 1842. Morreu com 45 anos de idade, legando à
humanidade inúmeras experiências das quais resultaram, por exemplo, o
Paleophone (aparelho capaz de reproduzir um som gravado). Dotado de uma
imaginação imperturbável, escreveu alguns poemas aos quais os especialistas se
encarregaram de colar o rótulo de humorísticos. Mas Cros, que tinha a mania das
invenções extravagantes, elevou a fasquia do humor a um ponto em que este quase
deixava de ser humorístico para se tornar engenhoso. Breton reparou no talento,
incluindo-o na Antologia do Humor Negro (editada, por cá, pelas Edições
Afrodite, nos idos de 1973). É precisamente daí que retiro esta passagem acerca
de uma impagável invenção, um contador de beijos:
Os resultados do contador de beijos são particularmente
curiosos. Este instrumento de minha invenção não é maior do que o aparelho que
é costume os saltimbancos meterem na boca para fazer falar o Polichinelo e se
designa pelo nome de prático. Mal se fazia terno o diálogo e a situação se
anunciava oportuna, escondia, é claro, o aparelho entre os meus dentes.
Até então experimentara um desdém imenso por essa expressão «mil beijos» que
aparece no fim das cartas de amor. Dizia a mim próprio que mais não era do que
uma hipérbole passada a linguagem vulgar por certos poetas de mau gosto como
Jean Second, por exemplo. Pois bem, muito feliz me sinto por contribuir com uma
verificação experimental a respeito dessas fórmulas instintivas que, antes de
mim, bastantes sábios haviam achado quiméricas ao máximo. No espaço de pouco
mais ou menos hora e meia o meu contador registou novecentos e quarenta e
quatro beijos.
Colocado na boca, o instrumento magoava-me; sentia-me preocupado com as minhas
investigações e, além disso, nunca as actividades fingidas igualam as reais.
Levando em conta tudo isto, veremos que o número de novecentos e quarenta e
quatro poderá ser ultrapassado frequentes vezes nas pessoas violentamente
apaixonadas.
944 beijos é muito beijo, mas não tantos quantos os tipos
possíveis de beijos que uma lista séria revelaria. Apoio-me nas teses
desenvolvidas por Diane di Prima nas suas Memórias de Uma Beatnik. Para quem desconheça,
esta Diane (n. 1934), ainda viva, é uma das princesas do movimento Beat. Com um
primeiro livro de poemas publicado às 24 primaveras, foi na ressaca do Maio de
68 que resolveu registar as memórias de um período de dez anos intensamente
divididos entre a exibição de uma obscenidade voluntarista e o erotismo poético
de experiências limite no território alucinante da cena beatnik. O primeiro capítulo
das memórias é fortemente exemplificativo, desviando-se apenas dos conteúdos de
bola vermelha quando a matéria é o beijo:
Há tantos tipos de
beijos como de pessoas ou das suas variantes e combinações à face da Terra. Não
há duas pessoas que beijem da mesma maneira nem duas pessoas que fodam da mesma
maneira — mas de certo modo, beijar ainda é mais pessoal e individualizado do
que foder.
Há pessoas que dão beijos intensos e
sérios, de lábios tensos e apertadas línguas duras enfiadas com determinação o
mais longe possível na boca do outro; há aqueles que beijam com uma languidez
afectada, fortuitamente, com languidez, de lábios moles, a esfregar ao de leve,
com as línguas quase desiguais com o esforço do impulso. Há as pessoas que
beijam com astúcia, cujos beijos começam por parecer inócuos, mas se vão
abrindo em amplas explosões de prazer. Há as pessoas que beijam de maneira insinuante,
cujos beijos são tão lascivos que nos deixam vagamente repugnados, como se
tivéssemos dado uma queca rápida no chão da casa-de-banho; e as pessoas cujos
beijos virginais parecem pegar-nos castamente na mão, enquanto nos viram
praticamente a boca do avesso. Há aqueles que beijam como se estivessem a
foder: com a língua a bombear freneticamente para a frente e para a trás entre
os lábios do parceiro a um ritmo de tirar o fôlego. Há muitos, muitos outros
tipos de beijos — pelo menos doze vieram-me à mente assim de repente. Façam a
vossa lista:
Precavendo-me contra perigos eminentes em matéria tão sensível,
nunca avancei na listagem. Mas sugiro que pensemos um pouco sobre o assunto. Talvez
alguns leitores desconheçam o prurido das prostitutas no que toca ao beijo, não
sendo rara a recusa de língua na língua por não haver dinheiro que pague tais
intimidades. Desenganem-se os néscios, nada disto tem que ver com a mania de
proteger os mamilos das vistas do mundo, quando tudo o resto está à mostra sem
preconceito nem pudor. A ter alguma coisa que ver, diríamos que o mamilo está
para a mama como o beijo para a alma. A verdade é que por mais voltas e teorias
que se dê à questão fornicar não é o mesmo que beijar. O segundo verbo é essencialista,
o primeiro é materialista. Através de um beijo partilha-se a alma, pelo que uma
foda sem beijos é mera foda, ou seja, é como ir a algum lado de passagem. Nos
seus múltiplos tipos, com máquinas que os contem ou não, os beijos são o desabrochar
de uma semente a que os românticos chamam amor. E com o amor não se brinca. Digo
eu. Charles Cros aparece traduzido pelo inevitável Aníbal Fernandes, Diane di
Prima por Maria Augusta Júdice.
2 comentários:
Um contador de beijos é coisa para ser o terror de muitos.
Olha se dá saldo negativo :-/
Enviar um comentário