domingo, 14 de fevereiro de 2016

B DE BEIJOS

Em dia de namoros, recupero duas velhas histórias com protagonistas diferentes. O primeiro é francês, chama-se Émile-Hortensius-Charles Cros e nasceu a 1 de Outubro de 1842. Morreu com 45 anos de idade, legando à humanidade inúmeras experiências das quais resultaram, por exemplo, o Paleophone (aparelho capaz de reproduzir um som gravado). Dotado de uma imaginação imperturbável, escreveu alguns poemas aos quais os especialistas se encarregaram de colar o rótulo de humorísticos. Mas Cros, que tinha a mania das invenções extravagantes, elevou a fasquia do humor a um ponto em que este quase deixava de ser humorístico para se tornar engenhoso. Breton reparou no talento, incluindo-o na Antologia do Humor Negro (editada, por cá, pelas Edições Afrodite, nos idos de 1973). É precisamente daí que retiro esta passagem acerca de uma impagável invenção, um contador de beijos:

Os resultados do contador de beijos são particularmente curiosos. Este instrumento de minha invenção não é maior do que o aparelho que é costume os saltimbancos meterem na boca para fazer falar o Polichinelo e se designa pelo nome de prático. Mal se fazia terno o diálogo e a situação se anunciava oportuna, escondia, é claro, o aparelho entre os meus dentes.

Até então experimentara um desdém imenso por essa expressão «mil beijos» que aparece no fim das cartas de amor. Dizia a mim próprio que mais não era do que uma hipérbole passada a linguagem vulgar por certos poetas de mau gosto como Jean Second, por exemplo. Pois bem, muito feliz me sinto por contribuir com uma verificação experimental a respeito dessas fórmulas instintivas que, antes de mim, bastantes sábios haviam achado quiméricas ao máximo. No espaço de pouco mais ou menos hora e meia o meu contador registou novecentos e quarenta e quatro beijos.

Colocado na boca, o instrumento magoava-me; sentia-me preocupado com as minhas investigações e, além disso, nunca as actividades fingidas igualam as reais. Levando em conta tudo isto, veremos que o número de novecentos e quarenta e quatro poderá ser ultrapassado frequentes vezes nas pessoas violentamente apaixonadas.


944 beijos é muito beijo, mas não tantos quantos os tipos possíveis de beijos que uma lista séria revelaria. Apoio-me nas teses desenvolvidas por Diane di Prima nas suas Memórias de Uma Beatnik. Para quem desconheça, esta Diane (n. 1934), ainda viva, é uma das princesas do movimento Beat. Com um primeiro livro de poemas publicado às 24 primaveras, foi na ressaca do Maio de 68 que resolveu registar as memórias de um período de dez anos intensamente divididos entre a exibição de uma obscenidade voluntarista e o erotismo poético de experiências limite no território alucinante da cena beatnik. O primeiro capítulo das memórias é fortemente exemplificativo, desviando-se apenas dos conteúdos de bola vermelha quando a matéria é o beijo:

   Há tantos tipos de beijos como de pessoas ou das suas variantes e combinações à face da Terra. Não há duas pessoas que beijem da mesma maneira nem duas pessoas que fodam da mesma maneira — mas de certo modo, beijar ainda é mais pessoal e individualizado do que foder.
   Há pessoas que dão beijos intensos e sérios, de lábios tensos e apertadas línguas duras enfiadas com determinação o mais longe possível na boca do outro; há aqueles que beijam com uma languidez afectada, fortuitamente, com languidez, de lábios moles, a esfregar ao de leve, com as línguas quase desiguais com o esforço do impulso. Há as pessoas que beijam com astúcia, cujos beijos começam por parecer inócuos, mas se vão abrindo em amplas explosões de prazer. Há as pessoas que beijam de maneira insinuante, cujos beijos são tão lascivos que nos deixam vagamente repugnados, como se tivéssemos dado uma queca rápida no chão da casa-de-banho; e as pessoas cujos beijos virginais parecem pegar-nos castamente na mão, enquanto nos viram praticamente a boca do avesso. Há aqueles que beijam como se estivessem a foder: com a língua a bombear freneticamente para a frente e para a trás entre os lábios do parceiro a um ritmo de tirar o fôlego. Há muitos, muitos outros tipos de beijos — pelo menos doze vieram-me à mente assim de repente. Façam a vossa lista:




Precavendo-me contra perigos eminentes em matéria tão sensível, nunca avancei na listagem. Mas sugiro que pensemos um pouco sobre o assunto. Talvez alguns leitores desconheçam o prurido das prostitutas no que toca ao beijo, não sendo rara a recusa de língua na língua por não haver dinheiro que pague tais intimidades. Desenganem-se os néscios, nada disto tem que ver com a mania de proteger os mamilos das vistas do mundo, quando tudo o resto está à mostra sem preconceito nem pudor. A ter alguma coisa que ver, diríamos que o mamilo está para a mama como o beijo para a alma. A verdade é que por mais voltas e teorias que se dê à questão fornicar não é o mesmo que beijar. O segundo verbo é essencialista, o primeiro é materialista. Através de um beijo partilha-se a alma, pelo que uma foda sem beijos é mera foda, ou seja, é como ir a algum lado de passagem. Nos seus múltiplos tipos, com máquinas que os contem ou não, os beijos são o desabrochar de uma semente a que os românticos chamam amor. E com o amor não se brinca. Digo eu. Charles Cros aparece traduzido pelo inevitável Aníbal Fernandes, Diane di Prima por Maria Augusta Júdice. 

2 comentários:

Cuca, a Pirata disse...

Um contador de beijos é coisa para ser o terror de muitos.

hmbf disse...

Olha se dá saldo negativo :-/