terça-feira, 19 de abril de 2016

ESSE EST PERCIPI


   Nas peças radiofónicas Words and Music e Cascando, o impulso partia do «director de cena» Croak ou do Abridor; em Dias Felizes era a campainha estridente que despertava Winnie e lhe ordenava que dormisse no final do dia. Até agora, os estímulos pessoais são, por conseguinte, processos mecânicos — sem um significado próprio que informe sobre o papel da aplicação do estímulo.
   Já com o feixe de luz em Play o caso é diferente: aqui o estímulo reside na fala, mais precisamente, no facto da pessoa em questão ser repentinamente vista (e permanecer no escuro antes e depois). Este «ser visto» foi em seguida o único impulso dramatúrgico para o Film de Beckett. O herói acredita, sem dúvida, na frase filosófica do empírico irlandês George Berkeley: Esse est percipi («Ser é ser percebido») e esforça-se por se reger pela mesma. No argumento escrito de Film, Beckett conjectura, assim, de uma forma aparentemente bastante filosófica:
   Se todas as percepções de outrem — animais, humanas e divinas — forem guardadas, detém-se a autopercepção. A procura do não-ser através da fuga à percepção dos outros anula a inevitabilidade da autopercepção.
   Estas frases não têm, contudo, de forma alguma, qualquer intenção filosófica, mas servem apenas para descrever a situação de cena:
   O que acima se  citou não pretende ser detentor da verdade e é somente encarado como um auxiliar da estrutura dramática.
   Para representar o protagonista desta situação, ele será repartido em objecto (O) e olho (E).
   Só no fim do filme se torna claro que o perseguido não é outro senão o próprio protagonista.
   E percebe O até ao final do filme por detrás de um ângulo que não tem mais do que 45º. Princípio básico: O cai ins percipi = só tem medo de ser percebido se este ângulo aumentar.
(…)
   Beckett traça com igual precisão todas as restantes cenas pantomímicas deste filme mudo (com Buster Keaton no papel principal) e demonstra uma vez mais as suas capacidades de exactidão de espaço e tempo: houve um único pormenor cénico impossível de realizar a contento e que teve de ser retirado.


Klaus Birkenhauer, in Beckett, trad. Maria Emília Ferros Moura, Círculo de Leitores, Dezembro de 1999, pp. 167-168.

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