quarta-feira, 20 de abril de 2016

LETRA ABERTA

Como interpretar a obra de Herberto Helder posterior a Servidões (2013)? Se esse livro marcava a descontinuidade do poema iniciado em 1958, parecendo haver nele a pretensão de um encerramento ou, se preferirem, o fecho do ciclo, os livros seguintes atiraram a poesia do poeta obscuro para fora do seu território fundador. Tanto A Morte sem Mestre (2014) como Poemas Canhotos (2015) podem ser vistos como testamentos onde se anuncia o fim do corpo físico ao qual, para todos os efeitos, esteve ligada a consumação da palavra poética. Se há dimensão característica desta obra é, precisamente, ser ela um corpo muito próprio a desenvolver-se a partir de um nome que a identifica. Não admira, por isso, que sobre o nome de Herberto tenham sido erguidos, ao longo dos anos, altos edifícios hermenêuticos, variando pouco, refira-se, da noção de poeta órfico sugerida por António Ramos Rosa e posteriormente acrescentada por Joaquim Manuel Magalhães com inusitados elogios a uma obscuridade linguística cultivada até ao último fôlego. Ora, o que o livro póstumo Letra Aberta (Março de 2016) vem acrescentar, tal como já havia sucedido com os dois títulos anteriores, é uma aclaração da ideia que o poeta tem de si próprio enquanto autor. Nunca como nestes três livros a condição do poeta Herberto Helder esteve tão presente nos seus poemas, havendo neles, até, uma obsessão com o eu que vulgariza o discurso poético e cobre aquele que esculpe a palavra com a poeira das coisas vulgares, quotidianas, incluindo as da mundanidade literária. Que são livros de despedida, isso é óbvio. Mas são também, e sobretudo, livros onde o poeta se pensa a si próprio sem pruridos nem autocomplacência. Em certo sentido, lemo-los como se estivéssemos a ler um diário, de tal modo eles encurtam a distância entre aquele que lê — «leitor sempre inimigo» (p. 55) — e aquele que escreve: «de um certo ponto de vista, / ou mesmo sem ponto de vista nenhum, / a verdade é que eu estou melhor agora / com 84 anos: / primeiro, como me acham muito muito velho, pensam que sou inofensivo, e não me chateiam, / segundo, deduzido do anterior, não posso ser um rival perigoso, / terceiro estou à partida fora de combate, / quarto, já não fodo, / quinto, em linha recta, nem é preciso perder tempo comigo, sou doce, sweet, frágil, etéreo, gasoso / e é esse exactamente o erro deles / — duro duro duro / quanto mais velho mais duro é o corno» (p. 59). Neste que presumimos ser um dos últimos poemas do autor, um dos inéditos escolhidos por Olga Lima para integrarem Letra Aberta, assistimos a uma curiosa enumeração onde a verdade se afirma (confessa?) para além dos pontos de vista, uma verdade que advém de um olhar do próprio sobre si mesmo, do que ele julga ser a forma como os outros o olham e, por fim, do modo como ele olha para os outros. Não é por acaso que falamos em confissão, dada a alusão a um papa no final do poema. Este registo confessional, por assim dizer, não sendo inteiramente novo, coloca em perspectiva já não o mundo nem a totalidade das coisas, já não o nome ou a palavra enquanto núcleo onde o poeta pode representar, fechar, cerrar o mundo, mas a própria existência na sua situação mais limite, a situação daquele que se encontra face ao abismo, perante a eminência da morte, a desconhecida morte. Em congruência, o ateu confesso escreve: «que o perdão sem piedade, / não pelos actos, mas / pelas palavras, / nunca me será dado, e rejubilo, / porque o perdão enfim veria os nomes anulados / pelo falso entendimento / coisa a coisa / — e eu não quero mais perdões de nada» (p. 13). A morte, já se disse, parece ser o tema por excelência destes poemas, mas não o é tanto enquanto objecto de reflexão como o é enquanto motivo, estímulo, impulso para um olhar sobre o próprio. A fotografia do poeta que acompanha os dois últimos livros é feliz por anunciar uma espécie de reflexo, o poeta a ver-se ao espelho da palavra com poemas de uma lucidez desarmante dos quais foi rasurada qualquer pretensão cosmogónica. A mínima gente, o povo, a gente bárbara, o jornal, as pessoas, a pátria, os outros, entram no poema enquanto contraponto a um Eu que se afasta, que se isola, que mergulha na escrita para nos oferecer biograficamente o seu maior legado, uma «linha de silêncio»: «com três dedos da mão escreves tudo o que sabes / mas precisas da mão inteira para assinar esse tão pouco sabido / com um dedo apenas escondes a linha já acabada / com a mão inteira assassinas / a pobre criatura / com apenas essa mão única ressalvas o teu nome / demoras a mão usada para não salvar coisa nenhuma / e a mesma já exausta para salvar a mão que não te salva / e não precisas de nada para te salvares do mundo: / apenas saltar no abismo / como a criança que salta à corda de ar» (p. 32).

Sem comentários: