Como interpretar a obra de Herberto Helder posterior a
Servidões (2013)? Se esse livro marcava a descontinuidade do poema iniciado em
1958, parecendo haver nele a pretensão de um encerramento ou, se preferirem, o
fecho do ciclo, os livros seguintes atiraram a poesia do poeta obscuro para
fora do seu território fundador. Tanto A Morte sem Mestre (2014) como Poemas
Canhotos (2015) podem ser vistos como testamentos onde se anuncia o fim do
corpo físico ao qual, para todos os efeitos, esteve ligada a consumação da
palavra poética. Se há dimensão característica desta obra é, precisamente, ser
ela um corpo muito próprio a desenvolver-se a partir de um nome que a
identifica. Não admira, por isso, que sobre o nome de Herberto tenham sido
erguidos, ao longo dos anos, altos edifícios hermenêuticos, variando pouco,
refira-se, da noção de poeta órfico sugerida por António Ramos Rosa e posteriormente
acrescentada por Joaquim Manuel Magalhães com inusitados elogios a uma
obscuridade linguística cultivada até ao último fôlego. Ora, o que o livro
póstumo Letra Aberta (Março de 2016) vem acrescentar, tal como já havia sucedido com
os dois títulos anteriores, é uma aclaração da ideia que o poeta tem de si
próprio enquanto autor. Nunca como nestes três livros a condição do poeta Herberto Helder
esteve tão presente nos seus poemas, havendo neles, até, uma obsessão com o eu
que vulgariza o discurso poético e cobre aquele que esculpe a palavra com a
poeira das coisas vulgares, quotidianas, incluindo as da mundanidade
literária. Que são livros de despedida, isso é óbvio. Mas são também, e
sobretudo, livros onde o poeta se pensa a si próprio sem pruridos nem
autocomplacência. Em certo sentido, lemo-los como se estivéssemos a ler um
diário, de tal modo eles encurtam a distância entre aquele que lê — «leitor
sempre inimigo» (p. 55) — e aquele que escreve: «de um certo ponto de vista, /
ou mesmo sem ponto de vista nenhum, / a verdade é que eu estou melhor agora /
com 84 anos: / primeiro, como me acham muito muito velho, pensam que sou
inofensivo, e não me chateiam, / segundo, deduzido do anterior, não posso ser um
rival perigoso, / terceiro estou à partida fora de combate, / quarto, já não
fodo, / quinto, em linha recta, nem é preciso perder tempo comigo, sou doce,
sweet, frágil, etéreo, gasoso / e é esse exactamente o erro deles / — duro duro
duro / quanto mais velho mais duro é o corno» (p. 59). Neste que presumimos ser
um dos últimos poemas do autor, um dos inéditos escolhidos por Olga Lima para
integrarem Letra Aberta, assistimos a uma curiosa enumeração onde a verdade se
afirma (confessa?) para além dos pontos de vista, uma verdade que advém de um
olhar do próprio sobre si mesmo, do que ele julga ser a forma como os outros o
olham e, por fim, do modo como ele olha para os outros. Não é por acaso que
falamos em confissão, dada a alusão a um papa no final do poema. Este registo
confessional, por assim dizer, não sendo inteiramente novo, coloca em
perspectiva já não o mundo nem a totalidade das coisas, já não o nome ou a
palavra enquanto núcleo onde o poeta pode representar, fechar, cerrar o mundo,
mas a própria existência na sua situação mais limite, a situação daquele que se
encontra face ao abismo, perante a eminência da morte, a desconhecida morte. Em
congruência, o ateu confesso escreve: «que o perdão sem piedade, / não pelos
actos, mas / pelas palavras, / nunca me será dado, e rejubilo, / porque o
perdão enfim veria os nomes anulados / pelo falso entendimento / coisa a coisa /
— e eu não quero mais perdões de nada» (p. 13). A morte, já se disse, parece
ser o tema por excelência destes poemas, mas não o é tanto enquanto objecto de
reflexão como o é enquanto motivo, estímulo, impulso para um olhar sobre o
próprio. A fotografia do poeta que acompanha os dois últimos livros é
feliz por anunciar uma espécie de reflexo, o poeta a ver-se ao espelho da
palavra com poemas de uma lucidez desarmante dos quais foi rasurada qualquer pretensão
cosmogónica. A mínima gente, o povo, a gente bárbara, o jornal, as pessoas, a
pátria, os outros, entram no poema enquanto contraponto a um Eu que se afasta,
que se isola, que mergulha na escrita para nos oferecer biograficamente o seu maior legado, uma
«linha de silêncio»: «com três dedos da mão escreves tudo o que sabes / mas
precisas da mão inteira para assinar esse tão pouco sabido / com um dedo apenas
escondes a linha já acabada / com a mão inteira assassinas / a pobre criatura /
com apenas essa mão única ressalvas o teu nome / demoras a mão usada para não
salvar coisa nenhuma / e a mesma já exausta para salvar a mão que não te salva
/ e não precisas de nada para te salvares do mundo: / apenas saltar no abismo /
como a criança que salta à corda de ar» (p. 32).
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