sábado, 7 de maio de 2016

MURPHY

Explicam os manuais que o absurdo se refere a tudo quanto escapa às leis da razão, é o que não tem lógica e, por isso, se considera dissonante, anormal. Samuel Beckett (n. 1906 – m. 1989) é um dos autores mais vulgarmente associados a uma corrente que poderíamos chamar do absurdo, na qual cabem obras tão distintas tais como a de Ionesco ou os contos de Kafka. Os existencialistas apropriaram-se do conceito para expressarem um sentimento de impotência face à morte, ou seja, o absurdo é o efeito produzido pela ausência de resposta para uma interrogação acerca do sentido da vida. Os textos de Beckett não participam de uma ilógica que nos permita considerá-los absurdos mediante os padrões supracitados. Antes pelo contrário, são de uma plausibilidade e de uma verosimilhança, para utilizar uma terminologia típica da epistemologia, quase científicos.
No fundo, assemelham-se a jogadas de xadrez num tabuleiro onde o pensamento defronta a realidade. Tomemos de exemplo um romance como Murphy, publicado pela primeira vez em 1938, obra onde vislumbramos uma espécie de disposição das peças que irão compor toda a posterior enciclopédia beckettiana. Como interpretar as relações estabelecidas entre as personagens? Quais os estados de alma que assomam os intervenientes? Sejam quais forem as respostas, e poderíamos elaborar tabelas exaustivas sobre o assunto, nada encontraremos de verdadeiramente extraordinário no sentido em que possa transcender a nossa concepção de um real conforme as leis da racionalidade. Murphy, o protagonista, caracteriza-se por um solipsismo vulgar e apático, procura desligar-se do mundo que o rodeia sentado numa cadeira de baloiço, cede à pressão da amada e encontra trabalho num sanatório. Que a espaços o possamos confundir com os loucos entre os quais faz pela vida, o que significa, em absoluto, não mais do que escapar à loucura dos que sobrevivem fora do sanatório, é um problema nosso, de leitores.
Se Murphy nos incute empatia é porque o compreendemos, tanto quando aceitamos as razões de Célia em busca do que na cabeça dela pudesse ser uma vida normal. O que será uma vida normal na cabeça de uma prostituta? «E que pensaria ele quando pensava nela?» — questiona-se. É neste jogo de suposições e de conjecturas, de interrogações silenciosas e de gestos solitários, que as personagens se relacionam entre si, como elementos singulares, individuais, isolados, porventura irremediavelmente isolados, cuja convivência se processa a partir de uma brutal consciência da inutilidade e de uma claríssima ideia dos limites que no fundo dão forma à tese segundo a qual o homem é um ser aberto ao mundo. Será, mas na exacta medida em que o mundo lhe é inacessível e vice-versa.
As intenções de Célia são simples, não quer voltar à prostituição e quer fazer de Murphy um homem; a profecia de Murphy é ainda mais simples e revelar-se-á correcta, ama Célia tanto quanto Célia o ama, sabe que o trabalho será o fim dos dois. Este ex-estudante de teologia que se embala numa cadeira de baloiço à espera «em vão pelo sono, noite após noite», tem uma visão do mundo e da existência, a sua indolência é a melhor forma de expressar essa visão, sonha com sonhar, não defrauda quem nele procure, e muitos o procuram, respostas para as mais complexas questões acerca do sentido da vida, responde-lhes com uma clareza cartesiana invejável:

   «— Desde Junho — continuou Murphy — que é sempre a mesma conversa: trabalho, trabalho, trabalho. Não há nada que aconteça no universo que não se destine a entusiasmar-me a procurar trabalho. Eu digo que um trabalho vai ser o nosso fim, ou pelo menos, o meu. Tu dizes que não, que vai ser o começo. Eu serei um novo homem, tu serás uma nova mulher, o excremento sublunar transformar-se-á todo em almíscar, haverá mais alegria no céu por um Murphy que arranja trabalho do que por todos os biliões de mangas de alpaca que nunca tiveram outra coisa. Tu tens um fraquinho por mim, eu preciso de ti, tens a faca e o queijo na mão, e ganhas.
   Calou-se, esgotado. A fúria que lhe tinha fornecido os meios para começar desaparecera quase de repente. Consumida por meia dúzia de palavras. Era sempre assim, e não só com a fúria, não só com as palavras.»


Repare-se no movimento que neste raro momento de explosão verbal leva da fúria às palavras e destas ao silêncio, um movimento onde a banalidade, a rotina e a monotonia traduzem um estado de espírito que é o de inúmeras personagens posteriormente exploradas por Beckett, seja por nelas pressentirmos uma atitude de desistência, uma posição de espera inconsequente, uma falência da vontade ou até uma certa castração do desejo que fica implícita na frase derradeira. 
Podemos, contudo, questionar-nos sobre o que leva Murphy a ter tanta certeza  sobre o fim que o aguarda caso encontre trabalho. Esta criatura, que encontrará trabalho onde lhe exigem que seja «uma criatura sem iniciativa», um trabalho num asilo psiquiátrico a tratar de doentes mentais, vê-se assim arrastada para o que poderíamos adivinhar ser um fatídico exílio. A sua empatia com os loucos é da mesma ordem da que sentimos por ele, não tanto porque ele seja louco, muito mais por nos fazer pensar o quão semelhantes somos a ele. Exilados nos nossos sanatórios laborais, também nós sabemos que demos cabo da música quando aceitámos ser instrumentos sem vibração. Não é mal de tédio que a poucos afecte, é uma espécie de condição existencial que esmaga o amor, o desejo e a paixão com o cansaço, com a saturação, e nos transforma em lixo. Lixo como as cinzas do corpo de Murphy, espalhadas pelo chão de um bar, varridas para o esgoto universal com todo o tipo de dejectos. 

- Samuel Beckett, Murphy, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Assírio & Alvim, Junho de 2003.

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