O pugilismo tem inspirado bons filmes. Ocorrem-me, assim
de repente, Raging Bull (1980), de Martin Scorsese, The Boxer (1997), de Jim
Sheridan, Million Dollar Baby (2004), de Clint Eastwood, ou o nosso Belarmino
(1964), de Fernando Lopes. Aprecie-se mais ou menos a modalidade, é impossível
negar-lhe certa dimensão plástica, com dois corpos a bailar num ringue enquanto
desferem golpes um no outro, simulam ataques, movimentam-se a defender,
resistem até à exaustão do adversário para depois explodirem em golpes
certeiros, implacáveis. Não são permitidos golpes baixos no boxe, ou seja, do
quadril para baixo. Talvez venha daí a expressão golpe baixo, aplicada a acções
desleais e insidiosas. Muhammad Ali não foi apenas um grande pugilista, o maior
de todos os tempos, a incorporar com mais estética do que qualquer outro tudo o
que o boxe pode ter de belo. Ele foi igualmente um exemplo de luta ética fora dos ringues, nele a estética e a ética aliaram-se para um combate muito
maior do que seria imaginável na existência de um desportista. Inegável a controvérsia do seu discurso, porventura aproveitado pelas piores razões por quem dele se serviu para chegar às massas. Mas vejamos: nascido no
estado racista do Kentucky, Cassius Marcellus Clay Jr. chegou
tão rapidamente a campeão de pesos pesados como a figura maldita em toda a
nação americana depois de se ter recusado a combater no Vietname. A objecção de
consciência valeu-lhe todo o tipo de ódios, fazendo ele dos golpes baixos motivo para lutas políticas que extravasavam as cordas do ringue. Converteu-se
ao islamismo como Malcom X, de quem foi amigo próximo até se terem afastado com
a sombra de Elijah Muhammad no centro da discórdia. Ali defendia os negros com um discurso racista, advogando uma separação entre raças que, em suma, simbolizava um orgulho extremado nas suas raízes. É difícil compreender isto sem um pouco de psicologia social. Estávamos no auge do activismo político nos
USA, com a luta pelos direitos civis, nomeadamente das comunidades afro-americanas,
a ocuparem uma enorme fatia do debate político. Muhammad Ali tornou-se um dos ícones dessa luta e, embora seja hoje um lugar-comum
reconhecê-lo, foi esse o mais importante dos seus combates. Will Smith deu-lhe
corpo no filme Ali (2001), de Michael Mann, clarificando aos olhos do mundo
como o desporto nem sempre pode ser reduzido à face atlética e corporal. A
outra face, complexa e desafiante, é a que advém do modo como os ídolos de massas podem
exercer a sua influência ao passarem uma mensagem em larga escala e com a
precisão de um golpe certeiro. É que essa mensagem vai directamente ao coração
dos fãs, dos admiradores, acerta no coração tanto quanto desperta a
consciência. O knockout numa personalidade desta dimensão significa algo mais
do que uma mera perda para a humanidade, como se costuma dizer, na medida em que
pode ser também um enorme ganho se soubermos colocar em perspectiva o quanto
vale o exemplo de uma vida assim. A sua popularidade pode ter sido manipulada, ele pode ter sido vítima das suas próprias circunstâncias, não faço de Ali um exemplo para a vida no que respeita ao discurso segregacionista e dúbio profetizado em inúmeras intervenções. Diverte-me o lado polémico da personagem, tanto quanto me estimula a sua dimensão iconográfica e inquieta o lado puramente combativo. Este sim, exemplar.
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