segunda-feira, 22 de agosto de 2016

CHEGA DE SAUDADE

É um dos melhores livros publicados este ano entre nós, perfeito da capa à contracapa. Jornalista de profissão, o brasileiro Ruy Castro (n. 1948) tem várias obras publicadas sobre a cultura popular brasileira. Biografias do futebolista Garrincha e da cantora Carmen Miranda fazem parte do currículo. Chega de Saudade — A História e as Histórias da Bossa Nova (Edições Tinta-Da-China, Junho de 2016) foi originalmente publicado em 1990, aporta nas livrarias portuguesa com cerca de 25 anos de depuração. Edição revista, esta versão portuguesa com quase 500 páginas lê-se obsessivamente. O mérito está no autor do livro, que soube oferecer o protagonismo às personagens de um movimento repleto de estrelas. Presume-se que escrever uma obra destas seja como cartografar o céu, recolhendo dados que permitem organizar por constelações grupos, querelas, conflitos, manias, todo um conjunto imenso de histórias, umas caricatas, outras trágicas, que acabam por retratar um tempo e as suas circunstâncias. 
Chega de Saudade não é apenas sobre um género musical, é também um retrato da sociedade brasileira, com especiais sublinhados para as suas assimetrias e divergências de raiz, e é também um ensaio acerca do meio cultural na sua relação com uma indústria ávida de sucessos e tantas vezes indiferente à criação. Enriquecido com várias fotografias, vasta bibliografia, uma cançãografia e uma discografia imprescindíveis, o volume foi dividido em duas partes que oferecem um nexo cronológico à narrativa. No prólogo percebemos desde logo que o astro central será João Gilberto, a quem se confere a invenção da bossa nova sem pruridos de maior. As origens, os vícios, as obsessões, os traços de personalidade, as cismas, o encanto e o desencanto, os encontros, as parcerias, os desencontros, a coluna vertebral do autor de Bim Bom (1958) percorrem todo o livro como uma espécie de fio condutor. Mas na primeira parte, intitulada O Grande Sonho, ficamos a saber que a bossa não nasceu do nada, que na cabeça de Gilberto não havia uma tabula rasa, houve antecedentes que convém registar, buracos negros e erupções solares cujos efeitos foram determinantes para que a edição de Desafinado se tornasse um marco histórico. 
Deste modo, os anos 30 e 40 não foram esquecidos, a relevância de autores como Orlando Silva, Dorival Caymmi, Dick Farney e Lucio Alves é mais do que apontada. O magma que nesses anos escorreu sobre a Terra surge não só como a semente da qual brota o fruto, mas como a própria terra onde a semente vai germinar. Se é justo falar do percurso de João Gilberto como uma espécie de fio condutor, seria injusto não reconhecer nas referências a Frank Sinatra as duas pontas desse fio. Na relação com a música norte-americana, a produção musical brasileira de vanguarda nesses anos encontra no jazz um parceiro ideal. Sinatra é a voz, pelo modo de cantar, de abordar a palavra, pela postura: ««Night and day», lançada em 1932 por Fred Astaire, tornara-se quase propriedade particular de Sinatra nos anos 40 e, juntamente com a sua coleção de gravatas-borboleta, tinha sido uma das principais causas de desmaios femininos durante a Segunda Guerra. (…) E «Copacabana» era a canção que revelara o brasileiro Dick Farney e demonstrara aos infiéis que era possível ser moderno, romântico e sensual em português, sem os arroubos de opereta de Vicente Celestino» (pp. 30-31). Não será pois incorrecto supor que a bossa nova surgiu de uma confluência entre ritmo e dicção que Sinatra terá inspirado, numa época onde já não fazia sentido ceder ao lamechismo a carga dramática de um romantismo que buscava a “joie de vivre” entre destroços. Daí que entre a formação do Sinatra-Farney Fan Club ainda na década de 1940 e o encontro seminal de Tom Jobim com o popular cantor norte-americano, 20 anos depois, exista uma espécie de princípio e fim que corresponde à imposição internacional da bossa nova. É como se finalmente os pulmões tivessem encontrado o ar. 
É correcto afirmar-se que Chega de Saudade se lê como um romance, uma história repleta de episódios com imensas personagens que dariam, por si mesmas, cada uma delas, muitas delas, um livro inteiro. Além dos supracitados, e para não tornar a prosa um inventário de nomes, referiam-se apenas Stan Kenton e Stan Getz como influências incontornáveis provenientes do jazz, o guitarrista Baden Powell, os compositores Carlos Lyra e Roberto Menescal, o poeta Vinicius de Moraes, cantoras como Dolores Duran, no início, e Elis Regina ou Nara Leão numa fase mais desenvolvida e em auto-negação do movimento. Enfim, um sem número de personagens que contribuíram para que a cultura musical brasileira fosse um viveiro sem fim. Num ano em que tanto se tem falado do Brasil, quase sempre pelas piores razões, este livro oferece um outro olhar sobre a cultura brasileira, uma cultura onde a criação fervilha de braço dado com o conflito. Uma cultura onde os artistas ainda têm um papel social a desempenhar, mais que não seja o de procurar expressão para a desventura de um povo assaltado pelo poder, como quase sempre são os povos, mas que nem por isso deixa de sentir e de buscar no amor e na alegria alimento para os dias.

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