quarta-feira, 14 de setembro de 2016

VÍVERES

Num ensaio datado de 1951, Jorge de Sena recordava-nos que Aristóteles julgava a poesia superior à história. A razão principal era porque cabia ao historiador dizer as coisas que sucederam, ao passo que o poeta tinha como função dizer as coisas que poderiam suceder. É verdade que Sena reconhece ter havido ao longo do tempo uma actualização do pensamento aristotélico, tendo as circunstâncias oferecido ao historiador a possibilidade de jogar com o poder da imaginação. A separação entre poesia e história não faz hoje o sentido que faria há 2000 anos, embora possamos concluir, na senda do estagirita, e citando o poeta português, que «a poesia é, essencialmente, a expressão da consciência da multiplicidade e complexidade do real — e mais: da consciência das infinitas virtualidades que o real contém». Esta noção tem as suas implicações, algumas delas inalienáveis da própria prática poética enquanto expressão de um real que é complexo e contém em si mesmo, como que em potência, possibilidades que só à arte cabe exprimir.
Quem tente acompanhar a produção poética nacional encontrará uma variedade de vozes que no essencial em pouco se diferenciam, precisamente por não expressarem senão uma perspectiva confessional ou empírica do real. Negam o imaginário, reduzem-se ao histórico, deixam-se circunscrever à experiência subjectiva de um sujeito que, sendo consequência das suas circunstâncias, nas mesmas só se esgotará caso o pretenda. A relação da poesia com a história surge plasmada na poesia de Miguel Cardoso (n. 1976) em pelo menos duas camadas de assimilação do real. A mais evidente é a da assunção de uma tradição poética que se afirma tanto a partir de uma incorporação no texto produzido, através de citações, invocações, alusões, como da desconstrução de um discurso arrancado das suas circunstâncias para ser transportado até à actualidade, assumindo assim novas possibilidades de sentido. A menos evidente, pelo menos para mim até à leitura deste Víveres (Tinta-da-China, Julho de 2016), é a de uma consciência da história da humanidade que recusa descontinuidades, insistindo numa abordagem do humano como ser em permanente construção. Uma história sem fim, portanto, apesar dos seus momentos identificáveis.
Repare-se na própria disposição das estâncias que compõem o livro (6 + 1 “anexo documental”), introduzidas por um “Então passou o tempo” e finalizadas, por assim dizer, com um “Voltar ao início”. No fundo, o que vislumbramos em Miguel Cardoso é da ordem do que outros poetas também desenvolveram, o chamado “poema contínuo” que, neste caso, sugere desde o arranque um eterno retorno que mais não é do que o retorno da poesia ao lugar de onde nunca saiu, a sua continuidade histórica: «Então passou o tempo e as curvas / E os caminhos trouxeram-nos aqui // Um lugar onde dar voltas em torno» (p. 7). Fazendo tema do fluir do tempo, Cardoso pontua as estâncias com epígrafes, não estabelece cortes nem cisões, simplesmente acelera ou desacelera o discurso, usando de uma invulgar disposição formal onde é notável a vertiginosa enumeração de acções.
Marcada pelo uso furioso do verbo, inventariando acções, afazeres, recomendações, anotações, apontando para o futuro tanto quanto envolve o passado e denuncia o presente, a poesia reunida em Víveres resulta numa espécie de registo que mais do que fixar o tempo, o expressa precisamente na complexidade aludida por Jorge de Sena. Inventários de experiências pessoais e subjectivas, mas não só. Dentre a vertigem discursiva irrompem fogachos de uma herança social, cultural e até religiosa como que oferecendo voz ao inconsciente colectivo que reside no sujeito poético. A ironia, ou se quiserem a face mais lúdica deste processo, é ser esse sujeito poético colocado num não-lugar, à procura de lar, habitação, em busca de acolhimento, sobrevivendo a uma forma de desterro que é, em suma e desde sempre, a condição natural do poeta (tanto ontológica como, salvo raríssimas excepções, também materialmente).
Quase a chegar ao fim, é isto o que o poeta tem para nos dizer:

Compramos o jornal à sexta-feira
para passar dedos pelas estreias
medirmos outra vez em mortos
a intensidade actual dos conflitos

Temos preferência na água com gás
e na adequada temperatura do café

disparamos em flecha depois do fecho dos mercados

e afinal não nos recompusemos
da derrota nem da troca da alegria
mal parada pela medida bem medida

Queremos um descampado para soltar águas e erros
solo sem dono para deleite do uso de correr de costas

Tivemos várias vidas.

Vê-se por exemplo ao virarmos
o costume ou seja bolsos
cabeças ao contrário

e afinal ainda queremos quase tudo

e usamos quando podemos
a primeira pessoa do plural

Não daremos a volta ao mundo.
Não damos toda a vida ao verso.

Giramos a mó dos dias.

Praticamos o contrário da prestidigitação.


Por enquanto, não morrer.

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