A figura de Abraham Lincoln é, para todos os efeitos, a
mais representativa dos Estados Unidos da América tal como hoje os conhecemos. Para
o representar, John Ford (1894-1973) concentrou-se no início de uma singular
carreira de advogado. Autodidacta, Lincoln denotou desde muito cedo enorme
paixão pelas leis. Há uma cena em Young Mr. Lincoln/A Grande Esperança (1939)
que evidencia como nenhuma outra essa dimensão passional face à lei. Lincoln é
o inexperiente advogado de defesa de dois jovens acusados de terem cometido um
assassinato. Chamada a depor pela acusação, a mãe dos jovens, que havia
testemunhado o suposto crime, é pressionada a revelar qual dos dois filhos
teria cravado a faca no coração da vítima. Recusa fazê-lo. O advogado de
acusação grita-lhe que tem ali uma oportunidade única de salvar um dos filhos da forca,
bastando-lhe para tal revelar qual dos dois foi o criminoso. Esvaída em
lágrimas, a mulher gagueja até que Lincoln interrompe abruptamente o depoimento.
Voltado para o juiz, o advogado de acusação protesta alardeando a inexperiência
de Lincoln: “Se o senhor advogado de defesa soubesse mais de leis…” Novamente
interrompido, Lincoln afirma: “Posso não saber muito de leis, mas sei
distinguir o certo do errado”.
A afirmação do jovem Lincoln é fulcral para a compreensão do
filme, nomeadamente por nela estar incutida a marca essencial de uma
personalidade que acabou por se transformar na mais representativa dos Estados
Unidos da América tal como hoje os conhecemos. E essa marca é a de uma concepção
do Direito capaz de aceitar que as acções humanas não se encerram no que a lei sobre
elas possa determinar, têm por detrás motivos e têm em vista intenções que as
tornam particularmente discutíveis. Em suma, nem sempre a lei encerra a boa
acção e nem sempre as boas acções são conforme a lei.
Num ensaio assaz
pertinente nos tempos que correm, Hannah Arendt (n. 1906 – m. 1975) problematiza
esta relação da lei com as acções humanas procurando um lugar para a
desobediência civil num sistema político democrático. Partindo dos exemplos
outorgados por Sócrates e Henry David Thoreau, autor ele mesmo de um célebre texto justamente intitulado A Desobediência Civil, Arendt propõe uma leitura da
desobediência civil que não se esgote na consciência isolada do indivíduo, ou
seja, que não se confunda com objecção de consciência. Escrito numa época em
que as manifestações pelos direitos cívicos estavam ao rubro, com lutas
estudantis na Europa e a Guerra do Vietname a acicatarem ânimos e contestação,
Desobediência Civil (Relógio D’Água, Janeiro de 2017) vem insistir numa
distinção clara entre “homem bom” e “bom cidadão”.
Para Arendt, a desobediência
civil é inerente aos processos de transformação de uma sociedade, provocando a
mudança na medida em que desafia as fragilidades da lei. Isto obriga a uma
outra distinção, nomeadamente nos sistemas democráticos, entre desobediência
civil e desobediência criminal. A primeira é exercida em público e tem em vista
um bem comum, ao passo que a segunda se exerce na obscuridade social e procura
favorecer meros interesses privados. Não deixa de ser curioso que a própria lei
se revele tão incapaz de travar a desobediência criminal e seja tão proactiva
na criminalização da desobediência civil. Assim sucede porque aquele que
participa na desobediência civil, ao contrário do criminoso, expõe-se perante a
lei, não lhe procura fugir, como alguns dos discípulos de Sócrates pretendiam
que ele fizesse, assumindo um confronto que, em última análise, tem em vista um
bem que a lei não contempla.
O problema está em que nos regimes democráticos a
lei surge de um consentimento do eleitor junto daqueles a que, por terem sido
eleitos, cabe a formulação da lei. A conclusão de Hannah Arendt não podia ser
mais acutilante: «Este consentimento, penso eu, é de facto inteiramente
fictício; de qualquer modo, nas circunstâncias actuais, perdeu toda a
plausibilidade. O próprio governo representativo está hoje numa crise, em parte
porque perdeu, no decurso do tempo, todas as instituições que permitiam a
efectiva participação dos cidadãos, e em parte porque está hoje gravemente
afectado pela doença de que sofre o sistema dos partidos: burocratização e
tendência dos dois partidos para não representar ninguém a não ser as máquinas
partidárias» (pp. 47-48). A desobediência civil encontra, desta feita, mais que
uma sustentação legal, um imperativo moral. Enquanto “associação voluntária” de
cidadãos que se reúnem em grupo tendo em vista o protesto, a desobediência
civil assume um ímpeto mobilizador que é factor de mudança no confronto com a
lei. Já não se reduz à voz isolada de um indivíduo contra o mundo, nem à
consciência da pessoa singular. É um factor de cidadania. E, enquanto tal, há
que lhe reconhecer um lugar na linguagem política.
4 comentários:
Muito bem, grande texto, com um princípio tão bem encontrado! Ainda ontem folheei esse livro de Hannah Arendt, está no caderno de livros, mas dia 1 vai estar na minha mão. Um abraço!
Abraço.
Vou comprar o livro. Saúde e bjs para toda a tribo
E fazes muito bem. :-)
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