quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

A GRANDE ESPERANÇA: DESOBEDIÊNCIA CIVIL

A figura de Abraham Lincoln é, para todos os efeitos, a mais representativa dos Estados Unidos da América tal como hoje os conhecemos. Para o representar, John Ford (1894-1973) concentrou-se no início de uma singular carreira de advogado. Autodidacta, Lincoln denotou desde muito cedo enorme paixão pelas leis. Há uma cena em Young Mr. Lincoln/A Grande Esperança (1939) que evidencia como nenhuma outra essa dimensão passional face à lei. Lincoln é o inexperiente advogado de defesa de dois jovens acusados de terem cometido um assassinato. Chamada a depor pela acusação, a mãe dos jovens, que havia testemunhado o suposto crime, é pressionada a revelar qual dos dois filhos teria cravado a faca no coração da vítima. Recusa fazê-lo. O advogado de acusação grita-lhe que tem ali uma oportunidade única de salvar um dos filhos da forca, bastando-lhe para tal revelar qual dos dois foi o criminoso. Esvaída em lágrimas, a mulher gagueja até que Lincoln interrompe abruptamente o depoimento. Voltado para o juiz, o advogado de acusação protesta alardeando a inexperiência de Lincoln: “Se o senhor advogado de defesa soubesse mais de leis…” Novamente interrompido, Lincoln afirma: “Posso não saber muito de leis, mas sei distinguir o certo do errado”. 
A afirmação do jovem Lincoln é fulcral para a compreensão do filme, nomeadamente por nela estar incutida a marca essencial de uma personalidade que acabou por se transformar na mais representativa dos Estados Unidos da América tal como hoje os conhecemos. E essa marca é a de uma concepção do Direito capaz de aceitar que as acções humanas não se encerram no que a lei sobre elas possa determinar, têm por detrás motivos e têm em vista intenções que as tornam particularmente discutíveis. Em suma, nem sempre a lei encerra a boa acção e nem sempre as boas acções são conforme a lei. 
Num ensaio assaz pertinente nos tempos que correm, Hannah Arendt (n. 1906 – m. 1975) problematiza esta relação da lei com as acções humanas procurando um lugar para a desobediência civil num sistema político democrático. Partindo dos exemplos outorgados por Sócrates e Henry David Thoreau, autor ele mesmo de um célebre texto justamente intitulado A Desobediência Civil, Arendt propõe uma leitura da desobediência civil que não se esgote na consciência isolada do indivíduo, ou seja, que não se confunda com objecção de consciência. Escrito numa época em que as manifestações pelos direitos cívicos estavam ao rubro, com lutas estudantis na Europa e a Guerra do Vietname a acicatarem ânimos e contestação, Desobediência Civil (Relógio D’Água, Janeiro de 2017) vem insistir numa distinção clara entre “homem bom” e “bom cidadão”. 
Para Arendt, a desobediência civil é inerente aos processos de transformação de uma sociedade, provocando a mudança na medida em que desafia as fragilidades da lei. Isto obriga a uma outra distinção, nomeadamente nos sistemas democráticos, entre desobediência civil e desobediência criminal. A primeira é exercida em público e tem em vista um bem comum, ao passo que a segunda se exerce na obscuridade social e procura favorecer meros interesses privados. Não deixa de ser curioso que a própria lei se revele tão incapaz de travar a desobediência criminal e seja tão proactiva na criminalização da desobediência civil. Assim sucede porque aquele que participa na desobediência civil, ao contrário do criminoso, expõe-se perante a lei, não lhe procura fugir, como alguns dos discípulos de Sócrates pretendiam que ele fizesse, assumindo um confronto que, em última análise, tem em vista um bem que a lei não contempla. 
O problema está em que nos regimes democráticos a lei surge de um consentimento do eleitor junto daqueles a que, por terem sido eleitos, cabe a formulação da lei. A conclusão de Hannah Arendt não podia ser mais acutilante: «Este consentimento, penso eu, é de facto inteiramente fictício; de qualquer modo, nas circunstâncias actuais, perdeu toda a plausibilidade. O próprio governo representativo está hoje numa crise, em parte porque perdeu, no decurso do tempo, todas as instituições que permitiam a efectiva participação dos cidadãos, e em parte porque está hoje gravemente afectado pela doença de que sofre o sistema dos partidos: burocratização e tendência dos dois partidos para não representar ninguém a não ser as máquinas partidárias» (pp. 47-48). A desobediência civil encontra, desta feita, mais que uma sustentação legal, um imperativo moral. Enquanto “associação voluntária” de cidadãos que se reúnem em grupo tendo em vista o protesto, a desobediência civil assume um ímpeto mobilizador que é factor de mudança no confronto com a lei. Já não se reduz à voz isolada de um indivíduo contra o mundo, nem à consciência da pessoa singular. É um factor de cidadania. E, enquanto tal, há que lhe reconhecer um lugar na linguagem política. 

4 comentários:

Jorge Muchagato disse...

Muito bem, grande texto, com um princípio tão bem encontrado! Ainda ontem folheei esse livro de Hannah Arendt, está no caderno de livros, mas dia 1 vai estar na minha mão. Um abraço!

hmbf disse...

Abraço.

MJLF disse...

Vou comprar o livro. Saúde e bjs para toda a tribo

hmbf disse...

E fazes muito bem. :-)