quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

TILÁPIA


Não fosse o comboio amarelo, ler-se-ia como parte de um diário. Indiferente à quebra dos versos, a prosa nada tem que nos demova ou desiluda. É um retrato fiel dos dias, do coração atingido por inesperado ataque, dúvidas que trazem de novo a infância pelos carris da memória, aqueles que se perderam pelo caminho, os ausentes, mas também os tratamentos exigidos para que envelhecer seja possível. Doença e prescrição. Só não há remédio para a morte, sabemo-lo desde que tomámos consciência da brevidade de uma vida. Contudo, em sessenta anos de biografia cabem poemas de uma ruína pessoal anotada aos fogachos, declarados refúgios para um Lázaro à moda contemporânea, o das certidões, das filas nos hospitais, rodeado de lamentos, só, entubado até que o coração desespere de espera e diga não estar mais para isto. Só nesta vida nos é possível pensar outras:

As particularidades ortográficas, diacríticas, lexicais
e sintácticas dos meus poemas valerão o que valerem
as minhas obsessões. O mais são as emergências
do costume, por não ter tempo para fazer
o que me dispus a fazer ou gostava de ter feito,
comer tilápia com arroz de jasmim e sultanas gregas,
estacionar um Karmann Ghia em Back Bay, como fez
John Updike num dos últimos poemas, ou visitar
a catedral da Transfiguração, em Preobrazhensky,
nas margens do lago Onega, na República da Carélia,
com as suas vinte e duas cúpulas de madeira.
A haver outra vida, é isso que farei proximamente,
ficando-me por agora a obstar ao medo de voltar
ao hospital para que me reanime a máquina.


Amadeu Baptista, in Vida Breve, Editora Labirinto, Dezembro de 2014, p. 16.