quarta-feira, 26 de abril de 2017

AS VESPAS

Aristófanes terá vivido entre 447 a.C. e 385 a.C. Entre os grandes dramaturgos gregos, ocupa o reinado da comédia. Na realidade, as únicas comédias completas que nos restam da Grécia Antiga são de Aristófanes. Talvez a veia conservadora, muito crítica do regime democrático, explique a sobrevivência ao longo dos séculos. As Vespas é uma dessas obras-primas que António Lobo Vilela traduziu para português, chamando atenção para as especificidades de Aristófanes: «Aristófanes é um saudosista: desagrada-lhe o novo panorama social e político de Atenas e evoca os belos tempos de Maratona. Por isso ataca todos os inovadores: os políticos que destroem os últimos privilégios das instituições oligárquicas; os filósofos que despertam o espírito crítico e destronam os deles da Acrópole; os poetas que buscam novas fontes de inspiração; os retóricos que preparam os oradores da Eclésia. Em alguns casos é a imoralidade que ele ataca, mas, no fundo, é as instituições democráticas que pretende atingir». Tamanho conservadorismo é já por si suficientemente cómico, embora não garanta bons textos. Sucede que Aristófanes era, sem dúvida, um grande escritor. A seu favor tem, paradoxalmente, o critério da inovação. Dirigindo-se ao público, roga: «amai e honrai melhor os poetas que procuram ideias e invenções novas». Ele, um saudosista.
As Vespas são uma prova viva da sua ironia verrinosa, uma sátira que tem por objecto os juízes ou, mais propriamente, a chicana judicial em voga na Atenas de então. Bdelicléone mantém preso seu pai, o juiz Filocléone, propondo-se curá-lo do terrível vício de julgar. À guarda dos escravos Sósio e Xântias, Filocléone faz tudo para se escapulir. Como um toxicodependente, ele ressaca dos tribunais. Aristófanes recorre a várias artimanhas retóricas para garantir o riso, desde a introdução do absurdo através da evocação de sonhos que lhe permitem críticas muito severas a eminentes personalidades do seu tempo, até ao recurso a expressões populares anedóticas, trocadilhos, palavras inventadas, deficiências fonéticas. A situação é em si mesma caricata, um filho que mantém o pai à guarda de dois escravos que, por sua vez, nos informam da doença do amo: a mania dos tribunais. O tribunal aparece, deste modo, transformado numa casa de vício, os juízes são as vespas que, supostamente ao serviço da justiça, acabam por favorecer os interesses de instituições superiores cujos objectivos são oferecer ao povo uma ilusão de ordem e de equidade:

FILOCLÉONE
   Engano-me, quando administro a justiça?
BDELICLÉONE
   Não compreendes que és o joguete desses homens (demagogos), a quem prestas quase um culto. Sem dares por isso, não és mais que escravo.

A ousadia de Aristófanes é admirável, mas mais ainda percebermos como há cerca de 2500 anos estas questões podiam ser levadas à cena sob aplauso geral: «No ano seguinte ao do insucesso da 2.ª representação da comédia Nuvens, Aristófanes fez representar As Vespas com grande êxito, embora esta comédia seja uma sátira à maneira como era administrada a justiça pelos atenienses». Vejamos como, então, tomando de exemplo uma das cenas mais hilariantes da peça:

XÂNTIAS (acusador)
   Escutai agora o acto de acusação. O cão cidateniense acusa Labes de Exone de ter, sozinho e contra toda a justiça, devorado um queijo da Sicília. Que a pena seja um colar de figueira.
FILOCLÉONE
   Ou condenado à morte, se o crime se provar.
BDELICLÉONE
   Aqui está Labes, o acusado.
FILOCLÉONE
   Oh! celerado! tem mesmo cara de ladrão. Gaba-se de me enganar, cerrando os dentes. Onde está o queixoso, o cão cidateniense?
O CÃO
   Beu! Beu!
BDELICLÉONE
   Aqui está.
FILOCLÉONE
   É outro Labes, bom ladrador e lambareiro de panelas.
SÓSIO (servindo de arauto)
   Silêncio! Sentem-se! Tu, sobe à tribuna e fundamenta a acusação.
FILOCLÉONE
   Entretanto, vou beber um copo.

Entretanto, o cão dá um arroto a queijo. Está provada a acusação. O cão, de facto, roubou um enorme queijo da Sicília e banqueteou-se sem repartir o que quer que fosse com o seu dono. É um glutão. A defesa, porém, garante que se trata de um cão valente, capaz de caçar lobos. Tem várias qualidades. «Se praticou algum furto, é preciso perdoar-lhe». Uma faca é chamada a testemunhar em favor do cão. O juiz comove-se com o testemunho e acaba por absolver o cão, indo contra a sua vontade inicial. O desfecho inusitado é um retrato impiedoso da volubilidade do sistema judicial, que deixando-se emaranhar em discussões estéreis acaba por decidir mais arbitrariamente do que racionalmente. Em suma:


   Se nos examinardes com cuidado, vereis que nos assemelhamos às vespas no carácter e na maneira de viver. Em primeiro lugar nenhum outro animal é mais colérico e mais terrível quando o irritam; além disso, todas as nossas ocupações lembram as das vespas. Formamos, como elas, diversos enxames que se dispersam por diferentes colmeias; estes vão julgar com o arconte, aqueles com os onze, outros no Ódeon: alguns, encostados aos muros, de cabeça baixa, quase sem se mexerem, parecem lagartas nos casulos. A nossa indústria provê abundantemente a todas as necessidades da vida; basta-nos, para isso, dar ferroadas. Mas há entre nós zangãos preguiçosos, desprovidos desta arma, que, sem partilharem das nossas canseiras, lhes devoram os frutos. É, na verdade, uma coisa intolerável, vermos arrebatar o nosso salário por quem não toma parte nos combates e nunca empola as mãos a manejar a lança ou o remo, em defesa do país. Em suma, a minha opinião é que, de futuro, quem não tiver aguilhão não toque no trióbolo (moeda que valia três óbolos entre os gregos). 

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