Aristófanes terá vivido entre 447 a.C. e 385 a.C. Entre
os grandes dramaturgos gregos, ocupa o reinado da comédia. Na realidade, as
únicas comédias completas que nos restam da Grécia Antiga são de Aristófanes.
Talvez a veia conservadora, muito crítica do regime democrático, explique a
sobrevivência ao longo dos séculos. As Vespas é uma dessas obras-primas que
António Lobo Vilela traduziu para português, chamando atenção para as
especificidades de Aristófanes: «Aristófanes é um saudosista: desagrada-lhe o
novo panorama social e político de Atenas e evoca os belos tempos de Maratona. Por
isso ataca todos os inovadores: os políticos que destroem os últimos
privilégios das instituições oligárquicas; os filósofos que despertam o
espírito crítico e destronam os deles da Acrópole; os poetas que buscam novas
fontes de inspiração; os retóricos que preparam os oradores da Eclésia. Em
alguns casos é a imoralidade que ele ataca, mas, no fundo, é as instituições
democráticas que pretende atingir». Tamanho conservadorismo é já por si
suficientemente cómico, embora não garanta bons textos. Sucede que Aristófanes
era, sem dúvida, um grande escritor. A seu favor tem, paradoxalmente, o
critério da inovação. Dirigindo-se ao público, roga: «amai e honrai melhor os
poetas que procuram ideias e invenções novas». Ele, um saudosista.
As Vespas são uma prova viva da sua ironia verrinosa, uma sátira que tem por objecto os juízes ou, mais propriamente, a chicana judicial em
voga na Atenas de então. Bdelicléone mantém preso seu pai, o juiz Filocléone,
propondo-se curá-lo do terrível vício de julgar. À guarda dos escravos Sósio e
Xântias, Filocléone faz tudo para se escapulir. Como um toxicodependente, ele
ressaca dos tribunais. Aristófanes recorre a várias artimanhas retóricas para
garantir o riso, desde a introdução do absurdo através da evocação de sonhos
que lhe permitem críticas muito severas a eminentes personalidades do seu
tempo, até ao recurso a expressões populares anedóticas, trocadilhos, palavras
inventadas, deficiências fonéticas. A situação é em si mesma caricata, um filho
que mantém o pai à guarda de dois escravos que, por sua vez, nos informam da
doença do amo: a mania dos tribunais. O tribunal aparece, deste modo,
transformado numa casa de vício, os juízes são as vespas que, supostamente ao
serviço da justiça, acabam por favorecer os interesses de instituições
superiores cujos objectivos são oferecer ao povo uma ilusão de ordem e de equidade:
FILOCLÉONE
Engano-me,
quando administro a justiça?
BDELICLÉONE
Não compreendes
que és o joguete desses homens (demagogos), a quem prestas quase um culto. Sem
dares por isso, não és mais que escravo.
A ousadia de Aristófanes é admirável, mas mais ainda
percebermos como há cerca de 2500 anos estas questões podiam ser levadas à cena
sob aplauso geral: «No ano seguinte ao do insucesso da 2.ª representação da
comédia Nuvens, Aristófanes fez representar As Vespas com grande êxito, embora
esta comédia seja uma sátira à maneira como era administrada a justiça pelos
atenienses». Vejamos como, então, tomando de exemplo uma das cenas mais
hilariantes da peça:
XÂNTIAS (acusador)
Escutai agora o
acto de acusação. O cão cidateniense acusa Labes de Exone de ter, sozinho e
contra toda a justiça, devorado um queijo da Sicília. Que a pena seja um colar
de figueira.
FILOCLÉONE
Ou condenado à
morte, se o crime se provar.
BDELICLÉONE
Aqui está Labes,
o acusado.
FILOCLÉONE
Oh! celerado! tem
mesmo cara de ladrão. Gaba-se de me enganar, cerrando os dentes. Onde está o
queixoso, o cão cidateniense?
O CÃO
Beu! Beu!
BDELICLÉONE
Aqui está.
FILOCLÉONE
É outro Labes,
bom ladrador e lambareiro de panelas.
SÓSIO (servindo de arauto)
Silêncio!
Sentem-se! Tu, sobe à tribuna e fundamenta a acusação.
FILOCLÉONE
Entretanto, vou
beber um copo.
Entretanto, o cão dá um arroto a queijo. Está provada a
acusação. O cão, de facto, roubou um enorme queijo da Sicília e banqueteou-se
sem repartir o que quer que fosse com o seu dono. É um glutão. A defesa, porém,
garante que se trata de um cão valente, capaz de caçar lobos. Tem várias
qualidades. «Se praticou algum furto, é preciso perdoar-lhe». Uma faca é
chamada a testemunhar em favor do cão. O juiz comove-se com o testemunho e
acaba por absolver o cão, indo contra a sua vontade inicial. O desfecho
inusitado é um retrato impiedoso da volubilidade do sistema judicial, que
deixando-se emaranhar em discussões estéreis acaba por decidir mais
arbitrariamente do que racionalmente. Em suma:
Se nos
examinardes com cuidado, vereis que nos assemelhamos às vespas no carácter e na
maneira de viver. Em primeiro lugar nenhum outro animal é mais colérico e mais
terrível quando o irritam; além disso, todas as nossas ocupações lembram as das
vespas. Formamos, como elas, diversos enxames que se dispersam por diferentes
colmeias; estes vão julgar com o arconte, aqueles com os onze, outros no Ódeon:
alguns, encostados aos muros, de cabeça baixa, quase sem se mexerem, parecem
lagartas nos casulos. A nossa indústria provê abundantemente a todas as
necessidades da vida; basta-nos, para isso, dar ferroadas. Mas há entre nós
zangãos preguiçosos, desprovidos desta arma, que, sem partilharem das nossas
canseiras, lhes devoram os frutos. É, na verdade, uma coisa intolerável, vermos
arrebatar o nosso salário por quem não toma parte nos combates e nunca empola
as mãos a manejar a lança ou o remo, em defesa do país. Em suma, a minha
opinião é que, de futuro, quem não tiver aguilhão não toque no trióbolo (moeda
que valia três óbolos entre os gregos).
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