quinta-feira, 27 de abril de 2017

AS VIRTUDES

   Ainda a propósito desta questão, seria algo redundante procurar exemplos para o que me parece evidente: precisamos de pessoas realmente interessadas na democracia. O que a revolução nos deu é impagável, interprete-se por onde se queira. Deu-nos a possibilidade de votarmos regularmente, isto é, de escolhermos os nossos representantes, deu-nos liberdade de imprensa e de expressão, ainda que estejamos cientes das novas formas de censura e do esforço que nos exige combatê-las, deu-nos conquistas sociais impagáveis que alteraram radicalmente o panorama do país (na educação, na saúde, nos mínimos de sobrevivência). Não nos deu, como é óbvio, o que já Almada dizia faltar-nos num certo manifesto: as virtudes. Nem podia dar. Essas conquistam-se no labor de cada dia.
   Continuamos a patinar num tecido social acrítico e empobrecido pela sua própria incúria. Os militares não podiam dar-nos pessoas interessadas, exigentes, desde logo consigo próprias, moralmente aceitáveis. Da pequena cunha que suporta as oligarquias ao favorzinho simpático, o sistema transporta dentro de si mesmo o vírus da corrupção e do nepotismo. Só há uma forma de o superar, é com as vacinas da educação e da cultura. Eu, pelo menos, não sei de outra. 
   Observemos a título de exemplo, até por cautela, o que se avizinha para as próximas autárquicas: o regresso dos dinossauros. Que Isaltino seja aplaudido de pé por uma horda de fiéis seguidores, não me choca. O que de algum modo parece paradoxal é as queixinhas sobre um putativo disfuncionamento do sistema judicial e esta simpatia por um tipo político entre os raros que cumpriram crime por fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. Afinal, quando a justiça parece funcionar é como se não funcionasse. O exemplo que poderia ter dado não serviu, pelo menos junto da tal horda de fiéis seguidores para quem nenhuma prova ou condenação demove a certeza abstrusa de uma suposta inocência. 
   Já sabemos como na mentalidade de muitos portugueses tais crimes se justificam: fez o que todos os outros fazem. Pois, o problema está em que nunca certas práticas são menos viciosas pelo simples facto de serem maioritariamente exercidas. Estes "homens do povo" são sempre perigosos, raramente servem de exemplo para o que de melhor deveríamos esperar da generalidade das pessoas. É isto que elas não querem perceber, é isto que faz sentir ser afinal tão pouco o muito que conquistámos de há 43 anos esta parte. Porque, como já dizia Almada, continuam a faltar-nos as virtudes. 

3 comentários:

Jorge Melícias disse...

Como diz Pascoaes: "Mas, na falta de virtudes, devemos ter o culto dos nossos pecados.".
Grato pela tua leitura do "hybris". Imagino que não tenha sido pêra doce a empreitada.

hmbf disse...

Fez-se. :-)

Jorge Melícias disse...

Também a luz e ao outro só ao 7.ª dia é que lhe deu o cansaço.