No silvo do dia
inclina-se a cabeça para o pó.
Para além do sol, rente à vertigem,
os que ainda vivem buscam o contacto.
Tudo aqui está mudo,
na cacofonia onde a luz
martela.
É preciso dar pancadas no vazio
para se ser ouvido, desfazer
com a cabeça as portas todas.
A escuta é improvável,
o homem ressona alto
por dentro do progresso.
A geografia dispersa muito as vozes
que tentam não morrer de asfixia
na riqueza. Em
certos momentos,
no decorrer da guerra
em que veio a fixar-se a existência,
estas vozes irão vociferar
ante os olhos penosos,
bocas secas, inteiriçados
defuntos que agora
vão dormir.
Com base em seres sem peso,
escavados por esta iteração industrial,
o inexorável frio
encadeia-se na voz
e propaga um silêncio de metais.
Ao nosso cadáver pediremos desculpa
- depois - no raro lance
em que a ausência do som
nos vai acompanhar até à campa.
A inclinar-se então para a poeira
erguida pelo bafo do futuro,
a cabeça vê: este pó
que o temor vai produzindo,
a organizar o mundo,
é a peçonha humana
a abrir mais estradas.
Alice Corinde (n. 1953), in Modas & Bordados d' Alice Corinde (1995). Presumível pseudónimo de Júlio Henriques, tradutor de
méritos reconhecidos, autor de narrativas diversas e, mais recentemente, editor
da revista Flauta de Luz. Os poemas coligidos de Alice Corinde, representada na
antologia Sião (1987), reflectem uma voz crítica e acusatória dos absurdos da
paisagem humana neste tempo de sociedades de consumo acossadas pela revolução
tecnológica. A destruição do mundo rural, o abandono da terra e o afastamento
no homem de tudo quanto o ligue à Natureza, são temas centrais numa obra onde à
sátira e à ironia podemos ligar uma prática heterodoxa da linguagem e do pensamento.
Embora não estejam isentas de uma disfarçada nostalgia, as “modas” de Alice
Corinde manifestam de um modo mais claro certo desdém pelas tendências emotivas
de um lirismo que esvazia a poesia de causas filosóficas e sociais. Incisivos no
tom, derisórios na linguagem, sublevam, sem compromissos que não sejam exclusivamente
poéticos, os problemas de um mundo que é o nosso.
3 comentários:
É, a poesia gozou uma graciosa do pensamento. É preciso é sentir muitos sentimentos. Bom poema.
Obrigada Henrique por me dares acesso a coisa tão bela. Subscrevo o parecer de Jorge Melícias.
Marina, é sempre um prazer.
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