Um soco no estômago
«O Inverno vai ser longo e áspero. Vou ter muito tempo para recordar.» Assim termina o último romance de Baptista-Bastos, Um Homem Parado no Inverno.
Um soco no estômago. Isso mesmo: um soco no estômago. Acabei de ler o livro. Estou sentado numa mesa junto a uma janela de vidros reforçados e, lá fora, os carros cruzam-se na avenida. Não ouço o barulho do trânsito. Mas vejo um sol meigo e tímido - um sol de Janeiro - a pontuar uns casebres no topo de um morro. Olho para alguns plátanos, de ramos secos erguidos para o céu azul. É Inverno. Recordo. Mas, antes de deixar sair o fio da memória, penso na próxima Primavera, depois de ter lido o romance pela segunda ou terceira vez, com as folhas já verdes do plátano. A história continua.
Recordo outros romances de Baptista-Bastos, onde se ouvia, com força, bater o vento da História e do Futuro. Recordo, juventude minha, o fascínio de Um Secreto Adeus. Recordo a sala grande da redacção do Diário Popular, conversas de afecto e companheirismo. Recordo, antes e depois, as palavras escritas, os pequenos papéis da solidariedade, o tique nervoso do acender um cigarro, o gesto de agarrar um copo para outra bebida.
Agora: um soco no estômago. A crueza do vazio. A dolorosa sensação de um frio interior. A cidade cercada, os campos desolados, as conversas perdidas, as ruínas circulares de aldeias remotas envoltas em neblina.
É como se caminhasse com o peso da memória de várias gerações traídas. Fantasmas entram no discurso e riem nas caveiras brancas de tanta ingenuidade.
Um Homem Parado no Inverno - Baptista-Bastos sereno no suplício. Mas, nas entrelinhas, sente-se o furor contido, a raiva em rastilho por entre alguns parágrafos. A vontade de cortar as pontes para novas pontes construir. Destruição necessária para novas construções.
Um Homem Parado no Inverno é o retrato de uma solidão que dói. Que dói por ser também a nossa, portuguesa, neste novelo que fomos enrodilhando, perdida a bússula, perdido o próprio Norte. Errantes, nómadas, assim vamos vivendo, enquanto não inventamos novos astrolábios. Enquanto novas caravelas não construirmos.
Portugueses e suaves assim parecemos. É um rame-rame a que nos obrigaram. Entramos na rotina da desilusão. O nevoeiro oculta os grandes desejos e a vontade de saltar por cima e ir ainda mais além.
Mas não se cale a voz, por mais solitária que pareça ser. Incomoda até, de tão sincera.
Estas são as palavras do sentimento para que a usura não se instale e o Inverno não doa tanto. Estas são também as palavras da amizade. Não é, de forma alguma, Um Imenso Adeus. Recordo: «A Felicidade Ainda é Possível», como dizia o outro.
Eduardo Guerra Carneiro, in O Revólver do Repórter, Editorial Teorema, 1994, pp. 185-186.
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