domingo, 14 de maio de 2017

F. F. F.


Fátima – Pela manhã, um enjoo de papa levou-me ao vómito. Lucas, a criança milagre, veio do Brasil, está bem e sem sequelas, asseguram os pais enquanto garantem: foi Nossa Senhora. A Igreja acolhe o milagre, promove-o, os fiéis esvaem-se em lágrimas, peregrinam até ao santuário e exultam com o terço coxo (diz que lhe falta uma conta) da Vasconcelos. A República desce ao beija-mão com o mesmo oportunismo de 1917. Olha-se para aquilo tudo com a sensação de que não passaram 100 anos por nós, nenhuma ciência, nenhuma História, nenhuma tecnologia, nenhum progresso, nada, absolutamente nada aconteceu. Leia-se ou releia-se Na Cova dos Leões, de Tomás da Fonseca. 

Futebol – Sportinguista que se preze não pode senão reconhecer mérito a este tetra. Com as televisões invadidas pelos festejos, recolho-me em reflexão com alguma ansiedade. Roubaram-me os lenitivos preferidos, sejam o Governo Sombra ou o Eixo do Mal. Seria difícil adormecer, não me puxassem os festejos para uma conversa de aqui há tempos com o meu amigo Ferreira. Com o Jorge Jesus vais ter espectáculo garantido, dizia-me ele. Eu, relativamente chateado com o afastamento do bom Marco Silva, mostrava-me céptico. É uma mania minha, pautada pela evidência: Jesus não quer nada comigo. Nem o outro, nem este. The show mus go off, camarada Ferreira.


Festival – O trabalho impediu-me o directo, mas lá fui espreitando pelo sítio da RTP o que ia acontecendo. Já com a porta fechada, fiquei na companhia de uma colega e dois seguranças a assistir à consagração final. A vitória portuguesa é-me especialmente querida por várias razões. Primeira, adoro a canção. Já o tinha dito aquando da audição inaugural. Segunda, simpatizo com a postura do Sobral. Gosto do timbre, dos tiques, do inegável bom gosto, do aspecto algo freak. Terceira, a canção impôs-se por aquilo que é, sem gajas boas nem fogo de artifício, sem coreografias pirosas nem lantejoulas, sem mulheres com barba nem tranças de três metros, sem pirotecnia. Simples, sóbria, directa ao coração. Em suma, é um sinal de esperança, ainda que ténue, como sempre sucede com estas coisas, que aquele despojamento tenha tocado as pessoas. O Sobral foi mesmo o salvador de um dia amargo. Agradecido

10 comentários:

Jorge Muchagato disse...

Os intervalos da realidade servem apenas para tornar mais doloroso o inevitável regresso à realidade, e a felicidade concedida nesse interregno, corresponde a uma piedosa esmola; a natureza da felicidade significa a mudança da realidade.

E a realidade da vida comum em Portugal não se moveu uma décima de milímetro. Estes três júbilos colectivos tornaram-na ainda mais inamovível.

hmbf disse...

A Hélia Correia foi distinguida com o Prémio Escritora Galega Universal 2017.

Caro Jorge, pelos relatos do meu pai e mãe, garanto-te que a realidade da vida comum alterou-se substancialmente nos últimos 50 anos. Infelizmente, não o suficiente para nos libertar-mos de constrangimentos populistas. Mas isto vai lá, com entusiasmo e perseverança.

Jorge Muchagato disse...

... sim Henrique, sem dúvida. Eu referia-me à actualidade, a vida comum antes e depois destes três feitos sem precedência... Porque nenhum deles vai tornar mais fácil colocar na mesa mais uma fatia de pão. Nem futebol, nem Fátima, nem Festival. Hoje continuaremos, a maior parte, a pagar, cada um, a vida do seu banqueiro de eleição e os respectivos desmandos. Céus, vencemos o Festival! Pois sim, escusam é de comemorar como se estivessem em 1969. Não vencemos o Festival, vencemos o Festival de 2017. Estes intervalos na realidade não são maná a cair docemente sobre o deserto. Bardamerda para o Festival: apesar da lei as pessoas com contas à ordem nos bancos continuam a pagar comissões de manutenção.

Anónimo disse...

Libertarmos

hmbf disse...

Caro anónimo, obrigado. Pensei em "libertarmo-nos" e saiu aquela coisa horrorosa.

hmbf disse...

Caro Jorge, não entendo a relação entre o Festival e os problemas económicos do país. A alegria colectiva da vitória, pelo inusitado da coisa, parece-me bastante positiva. Não me incomoda que as pessoas se alegrem, não me incomoda a alegria dos outros, fico até feliz por ver gente feliz. Vistas as coisas assim, bardamerda para o mundo. É tão injusto e paradoxal e desigual. Bardamerda para mim próprio por ser parte integrante deste mundo. Enfim… O Festival existe. Se não existisse, o mundo seria melhor? Portugal ganhou. Se não ganhasse, o país estaria melhor?

MJLF disse...

Dia 13 de maio sai de casa por volta das 8h30 para estar a manhã e a tarde a ensaiar com o coro de câmara da Universidade de Lisboa, a «Sinfonia dos Salmos» de Stravinsky. Eles convidaram os antigos elementos para participarem no concerto do 20º aniversário, que vai ser na Aula Magna dia 18 de Junho. Estivemos ali para os lados de Colares e foi óptimo, estive com pessoas que não via 4 ou 5 anos, a cantar com eles. Cheguei a Lisboa por volta das 20h e as avenidas principais já estavam cortadas por causa dos festejos dos futebol, mas consegui chegar a casa sem chatices. Fátima e futebol passaram-me literalmente ao lado. Ainda vi o Festival, mas tirei o som à maior parte das músicas, porque não dava para aguentar, ficava assim hipnotizada a olhar para o que lá se passava. A música cantada por Salvador Sobral marcou a diferença e fiquei muito contente e surpreendia com a vitória, sobretudo porque também veio dos votos do público pelo telefone. Foi um momento bonito, sobretudo para quem durante a infância e adolescência, nos anos 70 e 80, sofreu por as nossas músicas não terem votos. ;)

hmbf disse...

Tenho estado relativamente atento às reacções, entrevistas, recepções... O Salvador é, de facto, uma lufada de ar fresco na cultura popular portuguesa. Vejamos até que ponto o público conseguirá respeitar e entender a sua mensagem.

Jorge Muchagato disse...

A importância e o significado de ganhar o Festival Eurovisão da Canção em 2017 é muito menos interessante do que o significado dos maus resultados obtidos em 1969, 1971 ou 1973 com as canções escritas por Ary dos Santos. A parte mais ridícula de tudo isto é pretender celebrar-se esta vitória de 2017 como se estivéssemos em 1969, 1971 ou 1973. É preciso compreender as razões pelas quais Portugal nunca ganhou o Festival da Eurovisão, mas sobre isso as pessoas não pensam porque não sabem e porque não querem.

A única lufada de ar fresco que este País precisa é que as pessoas se movimentem para lutar contra o atropelo aos seus direitos e à sua dignidade, e não para celebrarem estrelas da bola que lhes escarram em cima se for preciso. Por isso, sim, bardamerda para a Bola, para o Papa e para o Festival.

hmbf disse...

Quem é que pretende celebrar esta vitória como se estivesse em 69, 71, 73? Onde detectaste esses sinais?

Eu não vi nada disso. Vi, vejo, pessoas satisfeitas com um feito histórico: uma canção portuguesa, cantada em português, ganhou o histórico Festival da Eurovisão. Em termos de cultura popular, isto tem um forte significado histórico. Seria um erro crasso inferiorizá-lo.

Não me parece muito aconselhável misturar alhos com bugalhos. Esta manifestação de alegria impede a consciência dos males sociais? Os direitos à dignidade são descurados por uma vitória num Festival?

Outra confusão que julgo perniciosa é meter tudo no mesmo saco: o centenário de Fátima, o tetra do Benfica, o Festival. Sobre Fátima, já disse o que tinha a dizer. Nenhuma empatia pela patranha. Sobre a vitória do Benfica, é coisa que diz respeito aos benfiquistas. A celebração da vitória no Festival é, desde logo, uma celebração da língua portuguesa e da música composta em Portugal. Isso parece-me relevante, sobretudo no contexto de uma cultura popular onde há tanto nos andamos a queixar das pimbalhadas que tomaram conta da indústria musical.

Julgo haver nas tuas palavras uma resistência à alegria colectiva que não partilho. Prefiro resistir à tristeza colectiva, à depressão colectiva, ao discurso "cinsalazarento" do "este país é sempre a mesma coisa". Ninguém é obrigado a gostar do Festival (eu nem gosto) ou de música ligeira. Mas como entender que, não se apreciando tais fenómenos, possa alguém ocupar-se a depreciar um momento de alegria alheia?

É só um momento de alegria. Não vejo como possa prejudicar as dores de parto de um mundo desgraçado.