O Jantar (Alfaguara, Junho de 2015), de Herman Koch (n.
1953), não obteve em Portugal o sucesso que várias notas de imprensa
reproduzidas na badana e na contracapa da edição portuguesa indiciam. Recordo-me
de uma recensão no Público que resumia o romance numa palavra: incompetência. Nem
tão mau quanto uma estrela, em cinco, pode sintetizar com demasiada acidez, nem tão bom
quanto as citações respigadas na imprensa internacional ventilam, O Jantar tem
a capacidade de nos colocar contra o narrador, independentemente dos juízos
morais que possamos ser levados a fazer sobre a forma como lida com a dificuldade
em mãos.
Professor de História “no inactivo”, por razões de saúde nunca
explicitadas, Paul Lohman narra-nos um jantar de família percorrendo um roteiro
convencionalmente distribuído por seis fases: aperitivo, entradas, prato
principal, sobremesa, digestivo, gorjeta. Digamos que entre os seis momentos se
destaca uma certa fragilidade estilística, oscilando entre a comédia de costumes
inicial e um thriller psicológico que nunca chega bem a sê-lo, já que os
eventuais momentos de tensão acabam invariavelmente traídos pela recorrente inoperância
do narrador. Perdido em conjecturas supérfluas sobre o conceito de
família feliz, olha para o filho Michel com insuportável indulgência, remói-se
sempre que se compara com o irmão, político famoso em vias de se tornar
primeiro-ministro da Holanda, parece ter de si próprio uma imagem desfocada.
Não é figura com quem se simpatize, ainda que, enquanto personagem literária, não
seja essa a sua maior fraqueza.
O problema está na superficialidade com que
temáticas complexas aparecem emolduradas na consciência de Paul, do racismo ao
bullying, passando pelos comportamentos desviantes e pela criminalidade na
adolescência, problemas que parecem não merecer o mesmo grau de reflexão que
lhe merece, por exemplo, o jacto de mijo de um cliente na casa de banho de um
restaurante luxuoso. Mostra-se saturado com a verborreia e a conversa fiada à
mesa do restaurante, julga os gestos do irmão, da cunhada e da mulher que com
ele dividem a mesa, concentra-se nos tiques do gerente e das empregadas, na compostura
dos restantes clientes perante a presença de um político famoso, mas nenhuma
destas divagações lhe oferece um interesse que o resgate da banalidade.
É no
prato principal que a história inflecte para direcções mais contagiantes. O
motivo do jantar obriga o narrador a exercícios de memória que nos deslocam
para outras dimensões, como sejam a indiferença das classes abastadas relativamente aos desfavorecidos ou o paternalismo de um discurso doméstico que parece ter abdicado da formação moral exclusivamente em favor do proteccionismo parental. Herman Koch baseia-se parcialmente no homicídio de uma
sem-abrigo em Barcelona, espancada e queimada viva no interior da entrada de um
banco, junto às caixas multibanco, por três jovens que terão alegadamente agido
por diversão. O foco é colocado na consciência dos pais dos jovens envolvidos.
Como lidar, enquanto pais, com uma situação destas? Parece haver um fio de
hipocrisia a ligar o ambiente no restaurante luxuoso e a atitude dos pais,
protectores, cúmplices, negacionistas e desculpabilizadores.
Confrontado com as
imagens do crime, Paul questiona-se até que ponto o filho pode ser inocente. Repugnam-nos
as desculpas de que se serve para inocentá-lo, não pela inexistência de uma
consciência de culpabilidade mas por tudo aparecer confinado à simplicidade de uma lei natural: «Fiz aquilo que achava que devia
fazer como pai: pus-me no lugar do meu filho» (p. 149). Tivesse o autor feito
algo parecido, colocando-se no lugar do leitor, talvez este jantar ganhasse outro interesse. Não o tendo feito, por incapacidade ou desinteresse, como que
nos serve um daqueles pratos que tanto irritam o narrador, um prato onde o que
mais se destaca é o vazio.
«Nem todas as vítimas são automaticamente inocentes»
(p. 183) é a súmula moral aqui ensaiada, mas sem argumentação que a sustente e
nos convença. De resto, perante os factos aludidos, pouco importa a inocência
da vítima, mesmo considerando que pudesse atenuar a gravidade da pena. De um
mesmo modo poderíamos advogar que nem todos os criminosos são automaticamente
culpados, embora a sofisticação da premissa não legitime o facto mais evidente,
ou seja, o crime cometido. Em três frases, o carácter de Paul pode ser
resumido como resumida fica a leitura deste romance: «Às vezes, ouve-se falar
de pessoas que perderam o olfacto e o paladar: para elas um prato com a comida
mais deliciosa já não significa nada. Era assim que eu via às vezes a vida,
como um prato de comida a arrefecer. Sabia que tinha de comer, caso contrário
morria, mas tinha perdido o apetite» (p. 203).
Uma última referência à fraquíssima
revisão que empobrece bastante a leitura.
1 comentário:
Gostei muito desta crítica. Ao contrário de muitas que vejo em vários jornais de referência, não me impedirá de ler o livro se houver, para tal, oportunidade.
Percebe-se que o narrador projecta o ethos de uma pessoa superficial. E com isso o porquê de ser um falhanço como pai.E, sobretudo, como educador. Tem interesse literário, sim. Não é, é de todo, uma personagem cativante. se calhar, faz falta no livro um bom prefácio. Podiam aproveitar o talento do Henrique para tal.
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