Tora do um
Desde o início que amei estrangeiros
será este o lado mais divino da minha alma
das crianças iemenitas com madeixas aos caracóis
com quem estudei regras e cânticos
o meu amor passou para os índios de Hollywood
e deles para os cidadãos tristonhos do governo militar
e deles para os palestinianos nos andaimes
e para os filipinos que ajudam velhos
e para os refugiados africanos belos
dormindo nos jardins numa nuvem de perfume estranho
e cozinhei lentilhas para o Michael da Eritreia
amei estrangeiros e estranhos e até doentes e aleijados
e as prostitutas e os prostitutos os criminosos e os agarrados
e percebi as cabeças dos reis dos anjos e dos jogadores de futebol
crânios feitos com diamantes
amei as línguas e as culturas
ainda que preferisse italiano e repuxos
e jardins de pedra e caligrafia japonesa
os cantos dos povos soavam-me por dentro com os pássaros da geografia
e todos os bichos da terra mugiam e uivavam
com os sinos das estrelas
e os murmúrios do vento no campo dos sapos
deuses alheios tomaram-me o coração
fiz sexo com os sacerdotes de todas as religiões
e beijei uma prostituta sagrada
nas nuvens de incenso dos seus templos
e amei à primeira vista
os monges jovens e as abas dos seus mantos
tive apenas deuses alheios
multidões de deuses alheios
e profetizei na praça principal
em nome de um deus inventado
ao som de tambores e gongos e flautas gritantes
que excitaram os meus olhos até às lágrimas
os escritos sagrados de todos os povos
foram sagrados aos meus olhos
e meteram-me electricidade metafísica nas mãos
mas isto é o sermão do herege
que ama qualquer tora
e não acredita em nenhuma
este é o canto do herege
que ama todos os deuses e os ídolos e o deus
mas não acredita na sua divindade
este é o canto do herege de si mesmo
que reza ao que está para lá do sagrado
ao que surge quando se perde
em desertos de areia na companhia de uma barata
e que não tem nome nem título nem imagem
e cuja tora é a tora do um
querubins copulando sobre a arca sagrada
Mordechai Geldman (n. 1946, num campo de refugiados em Munique, filho de pais polacos emigrados para Israel em 1949), in Teoria do Um - Vol. II, tradução de João Paulo Esteves da Silva, Douda Correria, Setembro de 2016, s/p.
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