terça-feira, 16 de maio de 2017

TEORIA DO UM



Uma leitura mais atenta de Teoria do Um, livro que a Douda Correria publicou em dois volumes vindos a lume em Maio de 2015 e Setembro de 2016, com tradução do hebraico por João Paulo Esteves da Silva, permite-nos detectar na poesia de Mordechai Geldman uma dimensão whitmaniana de que o poema Tora do Um (in Vol. II) é talvez o exemplo mais flagrante. Para o efeito, convém ter em conta as palavras introdutórias do tradutor: «O poema “Tora do Um” que agora se publica é, na versão original, o poema título e poderia (para não dizer, deveria) intitular-se, simplesmente “Teoria do Um”; contudo, para não desnaturar o tom especificamente religioso com que o termo é empregado neste poema, optei por manter a palavra hebraica ‘tora’. E agora peço ao leitor que tiver tido a paciência de ler esta nota, que sobreponha mentalmente a ‘tora’ as letras ‘e’ e ‘i’ quando ler o poema em causa, e imagine a harmonia possível entre ‘tora’ e ‘teoria’». A opção é válida, na medida em que a unidade teorizada nestes poemas não tem a força de lei de uma escritura sagrada. Assume, antes pelo contrário, o carácter herético de uma poesia aberta à alteridade. 
O problema da alteridade acaba por ser o mais interessantemente exposto na ideia de unidade explorada nestes poemas. No Vol. I esse problema surge implicitamente na utilização de um vocabulário revelador de desmultiplicações do eu, quer quando confere à poesia a natureza reflexiva de um espelho capaz de mostrar «a tua alma mais secreta», quer quando, inversamente, afirma que a «nudez trai a verdade» por também ela ser um traje. Talvez mais prosaicamente, no poema intitulado Karaoke é a questão da imitação que sublinha essa desmultiplicação do eu. Na sua aparente simplicidade, os poemas de Mordechai Geldman buscam uma verdade que escapa aos sentidos imediatos, uma verdade que desmente o princípio de não contradição ao acolher no seu discurso as nuances crepusculares do ser. A segunda pessoa a que se dirigem tantos destes poemas é, na realidade, uma pessoa absoluta onde cabem todos os géneros e oposições, não é o outro infernal de uma moral materialista nem a figura romântica de um tu ausente, não é um destinatário concreto, é todo aquele que, em abstracto, possa identificar-se, na sua alteridade, com as palavras do poeta. 
«Os poetas não escrevem / são prescritos e escritos / vacuidades embaraçadas / desenham-lhes a poesia e o destino / poesia e destino sinonimizam / na pousada do léxico / algo maior do que eles conduz-lhes a alma», afirma-se num poema do Vol. II. Já no poema longo intitulado O Poeta e o devaneio este mesmo problema aparece sumariado em dois versos importantíssimos: «são um só o poeta e o outro / são um só o poeta e o não poeta». Numa poesia assim deixa de fazer sentido opor o mesmo ao outro, a matriz simbólica do espelho leva a uma constatação: «um dia hei-de ler os meus poemas / como se os tivesse escrito um estranho». O outro-eu não surge aqui de um qualquer tipo de fusão que geraria apenas confusão, pelo menos não tanto quanto parece surgir de uma consciência de si mesmo enquanto ser aberto ao mundo e, neste sentido, mais afirmado do que anulado pela diferença.  
O tom coloquial adoptado, em alguns poemas do Vol. II de um erotismo exacerbado (vide, a título de exemplo, os poemas Porno 13 e Porno 14), gera entre o leitor e o poema uma aproximação natural, sem que em nenhum momento resvalem as palavras para a banalização de temas tão universais como sejam os do amor e da morte. Antes pelo contrário, na sua tal aparente simplicidade esta é uma poesia altamente problemática que apela a uma reflexão sobre os limites da capacidade transfiguradora do discurso poético: «Vi que sonhava / e saí por um momento do meu sonho / o que é que se revelou para lá do sonho / que dizer ou que falar / já não me lembro / voltei a afundar-me no sono / e sonhei que ia a sonhar / com a realidade perfeita / ou seja com um sonho / vou rezar ao meu sonho / na lua de mel de luxo / do meu enlace com a noite»
Há “poemas duplos” que se distinguem apenas pelo género do sujeito a que se destinam, outros há que se retomam como um eco (comparem-se Sozinho, do Vol. I, com Sozinho também esta manhã, do Vol. II), produzindo assim um efeito de continuidade na diferença, uma espécie de cabala cujo principal ensinamento é o de um encontro autêntico através da linguagem poética. Sem negar a singularidade do indivíduo, esta "teoria do um" admite a alteridade no indivíduo. O eu é já um todo onde cabe a diversidade, um pouco à maneira do que Pessoa desenvolveu com a heteronímia e Walt Whitman semeou com uma canção de si mesmo englobante da mundana pluralidade que afecta a pessoa humana. 
Aponte-se apenas a repetição escusada nos dois volumes (terá sido lapso?) de um mesmo ciclo de haiku intitulado Kyoto

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito obrigado Henrique pela leitura atenta. E sim, Kyoto repete-se por lapso. Só que eu não acho que seja pena; soa-me bem assim--cria uma ligação entre os dois volumes desunidos da Teoria. Mas, claro, peço desculpa. Abraço. João

hmbf disse...

Grato pelo comentário. Forte abraço. Saúde,