Uma leitura mais atenta de Teoria do Um, livro que a
Douda Correria publicou em dois volumes vindos a lume em Maio de 2015 e Setembro
de 2016, com tradução do hebraico por João Paulo Esteves da Silva, permite-nos
detectar na poesia de Mordechai Geldman uma dimensão whitmaniana de que o poema
Tora do Um (in Vol. II) é talvez o exemplo mais flagrante. Para o efeito,
convém ter em conta as palavras introdutórias do tradutor: «O poema “Tora do Um”
que agora se publica é, na versão original, o poema título e poderia (para não
dizer, deveria) intitular-se, simplesmente “Teoria do Um”; contudo, para não
desnaturar o tom especificamente religioso com que o termo é empregado neste
poema, optei por manter a palavra hebraica ‘tora’. E agora peço ao leitor que
tiver tido a paciência de ler esta nota, que sobreponha mentalmente a ‘tora’ as
letras ‘e’ e ‘i’ quando ler o poema em causa, e imagine a harmonia possível
entre ‘tora’ e ‘teoria’». A opção é válida, na medida em que a
unidade teorizada nestes poemas não tem a força de lei de uma escritura
sagrada. Assume, antes pelo contrário, o carácter herético de uma poesia aberta
à alteridade.
O problema da alteridade acaba por ser o mais interessantemente
exposto na ideia de unidade explorada nestes poemas. No Vol. I esse problema
surge implicitamente na utilização de um vocabulário revelador de desmultiplicações
do eu, quer quando confere à poesia a natureza reflexiva de um espelho capaz de
mostrar «a tua alma mais secreta», quer quando, inversamente, afirma que a
«nudez trai a verdade» por também ela ser um traje. Talvez mais prosaicamente,
no poema intitulado Karaoke é a questão da imitação que sublinha essa
desmultiplicação do eu. Na sua aparente simplicidade, os poemas de Mordechai
Geldman buscam uma verdade que escapa aos sentidos imediatos, uma verdade que desmente o princípio de não contradição ao acolher no seu
discurso as nuances crepusculares do ser. A segunda pessoa a que se dirigem
tantos destes poemas é, na realidade, uma pessoa absoluta onde cabem todos os géneros
e oposições, não é o outro infernal de uma moral materialista nem a figura
romântica de um tu ausente, não é um destinatário concreto, é todo aquele que,
em abstracto, possa identificar-se, na sua alteridade, com as palavras do poeta.
«Os poetas não escrevem / são prescritos e escritos / vacuidades embaraçadas /
desenham-lhes a poesia e o destino / poesia e destino sinonimizam / na pousada
do léxico / algo maior do que eles conduz-lhes a alma», afirma-se num poema do
Vol. II. Já no poema longo intitulado O Poeta e o devaneio este mesmo problema aparece
sumariado em dois versos importantíssimos: «são um só o poeta e o outro / são
um só o poeta e o não poeta». Numa poesia assim deixa de fazer sentido opor o
mesmo ao outro, a matriz simbólica do espelho leva a uma constatação: «um dia
hei-de ler os meus poemas / como se os tivesse escrito um estranho». O outro-eu não surge aqui de um qualquer tipo de fusão que geraria apenas confusão, pelo menos não tanto quanto parece surgir de uma consciência de si mesmo enquanto ser aberto ao mundo e, neste sentido, mais afirmado do que anulado pela diferença.
O tom
coloquial adoptado, em alguns poemas do Vol. II de um erotismo exacerbado
(vide, a título de exemplo, os poemas Porno 13 e Porno 14), gera entre o leitor
e o poema uma aproximação natural, sem que em nenhum momento resvalem as
palavras para a banalização de temas tão universais como sejam os do amor e
da morte. Antes pelo contrário, na sua tal aparente simplicidade esta é uma
poesia altamente problemática que apela a uma reflexão sobre os limites da
capacidade transfiguradora do discurso poético: «Vi que sonhava / e saí por um
momento do meu sonho / o que é que se revelou para lá do sonho / que dizer ou
que falar / já não me lembro / voltei a afundar-me no sono / e sonhei que ia a
sonhar / com a realidade perfeita / ou seja com um sonho / vou rezar ao meu
sonho / na lua de mel de luxo / do meu enlace com a noite».
Há “poemas duplos” que se distinguem apenas
pelo género do sujeito a que se destinam, outros há que se retomam como um eco
(comparem-se Sozinho, do Vol. I, com Sozinho também esta manhã, do Vol. II),
produzindo assim um efeito de continuidade na diferença, uma espécie de cabala cujo
principal ensinamento é o de um encontro autêntico através da linguagem
poética. Sem negar a singularidade do indivíduo, esta "teoria do um" admite a
alteridade no indivíduo. O eu é já um todo onde cabe a diversidade, um pouco à
maneira do que Pessoa desenvolveu com a heteronímia e Walt Whitman semeou com
uma canção de si mesmo englobante da mundana pluralidade que afecta a pessoa humana.
Aponte-se apenas a repetição escusada nos dois volumes (terá sido lapso?) de um
mesmo ciclo de haiku intitulado Kyoto.
2 comentários:
Muito obrigado Henrique pela leitura atenta. E sim, Kyoto repete-se por lapso. Só que eu não acho que seja pena; soa-me bem assim--cria uma ligação entre os dois volumes desunidos da Teoria. Mas, claro, peço desculpa. Abraço. João
Grato pelo comentário. Forte abraço. Saúde,
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