A história de Stefan Zweig (n. 1881 – m. 1942) é
conhecida, embora nunca seja pleonástico relembrar alguns pormenores que
acabaram por condicionar a obra publicada. Nascido no seio de uma abastada
família vienense de origem judaica, estudou nas melhores escolas. Os primeiros
poemas apareceram publicados quando tinha apenas dezasseis anos de idade.
Estudou Filosofia e Ciências Literárias, tendo vindo a afirmar-se como um dos
maiores intelectuais do seu tempo. A vastíssima obra inclui poesia, contos,
teatro, ensaios, biografias, praticamente todos os géneros que possamos
imaginar. O interesse pelos autores modernos levou-o à tradução de Baudelaire e
a monografias sobre Verlaine e Rimbaud, demarcando-se assim de formas literárias mais tradicionais. Apesar de ter viajado muito, mantendo uma intensa
actividade criativa no decorrer das digressões, será em 1933, na sequência das
fogueiras nazis onde os seus livros serão desfeitos em cinza, que resolverá
abandonar definitivamente a Viena Natal, deslocando-se de França até Itália e fixando-se, posteriormente,
em Inglaterra. Viagens ao Brasil e a Portugal levaram-no a interessar-se pela
figura de Fernão de Magalhães, a quem dedicará uma das suas famosas obras
biográficas. Em 1940 adquiriu cidadania britânica, mas no ano seguinte exilou-se
no Brasil. No dia 22 de Fevereiro de 1942 acabou por se suicidar, deixando para
a posteridade uma declaração de despedida onde agradece a hospitalidade
brasileira. Não obstante, a depressão, a saturação e a desesperança levaram a
melhor: «Depois dos meus sessenta anos seriam necessárias forças especiais para
começar novamente tudo de novo».
Sobre esta Novela de Xadrez (Livros do Brasil/Porto
Editora, Março de 2017) recai a curiosidade de haver sido um dos seus escritos
derradeiros, pressentindo-se nas personagens algumas das características que
terão levado ao colapso de Zweig. Trata-se de uma pequena novela (cerca de 70
páginas nesta edição de bolso da muito recomendável Colecção Miniatura), aqui
enriquecida por um prefácio de Álvaro Gonçalves e por uma cronologia
biográfica. Narrada na primeira pessoa, Novela de Xadrez relata o inesperado
encontro, numa viagem de navio entre Nova Iorque e Buenos Aires, com escala no Rio
de Janeiro, entre um campeão mundial de xadrez e uma misteriosa criatura. A
determinada altura, o narrador desloca o protagonismo para um monólogo desta
estranha criatura. Temos, deste modo, dois narradores no interior de uma mesma
narrativa, como teremos dois adversários à volta de um tabuleiro de xadrez.
O
primeiro, de origens muito humildes, provém da Eslávia do Sul (antiga Jugoslávia) e
tornou-se campeão de xadrez acidentalmente. Passivo, lento, algo imbecil e
fleumático, pouco inteligente, descobre, porém, um talento inigualável e inato
para o xadrez. Esta descoberta torná-lo-á um rapaz-prodígio, daquelas
personalidades em quem a natureza parece comandar todo o destino e o instinto
todas as acções. Completamente diferente, a estranha criatura que se irá opor a
este campeão é um indivíduo absolutamente cerebral. Saberemos da voz do próprio
a sua história, enquanto a relata ao narrador que nos guia pelas particularidades
de um jogo capaz de produzir as estrelas mais singulares. Capturado pelos
nazis, experienciou a pior das torturas: «Não nos faziam nada – éramos colocados
simplesmente no mais absoluto nada, pois, como se sabe, não há nada no mundo
que produza uma semelhante pressão sobre a psique humana como o próprio nada»
(p. 64). Esta pressão do nada, o vazio , a espera e a solidão, esta rotina do
nada absoluto, a «maldosa tortura desta solidão», ele conseguirá superar
decorando as jogadas de xadrez fixadas num livro que lhe virá parar às mãos.
Do nada absoluto à obsessão total, a mente da estranha criatura transportá-la-á
para o limiar da loucura, para uma «intoxicação de xadrez» alienante, doentia.
O
interesse desta partida está mais nas características dos adversários do
que no jogo em si. Stefan Zweig coloca frente a frente, com o tabuleiro axadrezado
da vida a separá-los, o talento inato e a obsessão intelectual, ambas
características que facilmente reconhecemos na sua biografia. O nervosismo, a
impaciência, a saturação pontuam as jogadas. Cada um destes jogadores pode ser interpretado
como o “eu-brancas” e o “eu-pretas” de um mesmo intelecto, num desgastante desafio
disputado no interior da alma de um homem. Profundamente psicológica, esta
novela reflecte também uma leitura da Europa então destroçada por uma
estapafúrdica doutrina política incapaz de entender como num mesmo ser humano se
articulam de um modo conflituoso o inato e o adquirido. A maior derrota será ter de conviver com quem não o entenda, com quem se convença de uma
natureza maquinal do ser. Independentemente da sua previsibilidade, o ser de um homem será invariavelmente tão fruto dos acasos e dos acidentes como da herança que carrega no
sangue sem que o determine. Poucos meses antes de se ter suicidado, Stefan Zweig escreveu esta Schachnovelle e iniciou um estudo sobre Montaigne. E foi algures no meio destes dois projectos que terminou a sua autobiografia, literária e literalmente.
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