A história por detrás de O Caçador de Histórias
(Antígona, Setembro de 2017) é contada por Carlos E. Díaz na nota da edição
argentina. Eduardo Galeano (n. 1940 – m. 2015) trabalhou no livro entre os anos
de 2012 e 2013, tendo a edição sido retardada devido ao precário estado de
saúde do autor. À secção de histórias coligidas sob o título genérico Moinhos de
Tempo, foram entretanto acrescentados mais três conjuntos: Os Contos Contam,
Prontuário e Quis, Quero, Queria. O resultado é impressionante, tanto pela
extensão como pelas características que o volume acaba por assumir. O Caçador
de Histórias não é uma simples recolha de contos. Na verdade, estamos perante uma
súmula do pensamento a que Galeano habitou os seus leitores. Em defesa dos
desprotegidos, em defesa da natureza e de um ecologismo social, contra o
capitalismo selvagem e denunciando as repercussões devastadoras do mundo
globalizado, nestas histórias o anedótico mistura-se com a fábula, memórias
pessoais convivem com mitos, factos e devaneios servem uma mesma causa enquanto
exemplos morais de uma demanda política: tornar visível o invisível, dar voz a
quem a não tem. Galeano revolta-se contra a impunidade dos criminosos,
indigna-se com as injustiças sociais e consequentes misérias de um mundo
desequilibrado, denuncia e acusa atrocidades através de pequenos textos cuja
força maior é a de serem exemplo simbólico do tema em discussão.
Um desses temas, dos mais recorrentes, é o contraste entre o mundo dito
civilizado e os costumes indígenas, tido como bárbaros pela arrogância do
colonizador. Exemplo:
COSTUMES BÁRBAROS
Os conquistadores
britânicos ficaram com os olhos esbugalhados de assombro.
Eles provinham
de uma nação civilizada, onde as mulheres eram propriedade dos maridos e lhes
deviam obediência, como a Bíblia mandava, mas na América foram encontrar um
mundo às avessas.
As índias
iroquesas e outras revelavam-se suspeitas de libertinagem. Os maridos nem
sequer tinham o direito de castigar as mulheres que lhes pertenciam. Elas tinham
opiniões próprias e bens próprios, direito ao divórcio e direito de voto nas
decisões da comunidade.
Os brancos invasores
já não conseguiam dormir em paz: os costumes das selvagens pagãs podiam
contagiar-lhes as mulheres.
A ironia e o humor são ferramentas úteis a serviço de uma
desconstrução dos preconceitos culturais, ao mesmo tempo que servem para
desmascarar os estereótipos e o etnocentrismo cultural que de há muito contaminam
o modo de olhar o outro, o diferente, o que se opõe não por ser oposto, mas
por ser desviante. Num dos textos finais, de índole autobiográfica,
Galeano revela que uma das razões que mais o influenciaram a ser escritor foi a
de dar a ver a quem não teve essa oportunidade. «Escrever cansa, mas consola»,
afirma. Há um espírito de missão que atravessa os seus textos, simples mas penetrantes,
perspicazes e inteligentes, textos que despoluem o pensamento com uma
extraordinária capacidade de síntese. «Os anónimos contadores de histórias é
que me ensinaram tudo o que sei», confessa. E se o pouco ensino formal que teve
deu-lhe, pelo menos, o saber ler e escrever, a cultura do saber ouvir terá sido,
porventura, das que mais beneficiaram o seu enormíssimo talento. Não importa o
que de mentira ou de verdade exista numa destas histórias, conquanto a sua moral seja
sempre verdadeira. Importa a mensagem subentendida no texto, essa impõe-se que seja
verdadeira. E para ser verdadeira implica que seja eticamente irrepreensível.
Veja-se como a mensagem ecológica ganha numa pequena história a dimensão de uma causa global:
UMA NAÇÃO CHAMADA LIXO
Em 1997, o
navegador Charles Moore descobriu a sul do oceano Pacífico um novo arquipélago,
feito de lixo, que já era três vezes maior do que toda a Espanha.
As cinco ilhas
que formam esta imensa lixeira alimenta-se de plástico, pneus usados,
ferro-velho, resíduos industriais e minerais, e muitíssimos outros desperdícios
que a civilização atira das cidades para o mar largo.
No ano de 2013, iniciou-se
uma campanha para outorgar a categoria de Estado a esta nova nação, que bem
poderia ter bandeira própria.
Eduardo Galeano fala ao leitor com o tom dos grandes
mestres, num livro que é também um arquivo de factos contra o esquecimento. A
sua simplicidade não provém de uma simplificação dos problemas ou de um simplismo
ingénuo, ela é a consequência de uma vida de viagens exteriores e interiores,
viagens que lhe ofereceram retratos do mundo ao mesmo tempo que o obrigaram a
pensar-se a si próprio nesse mesmo mundo. A sua simplicidade é sinal de uma
maturidade que não está ao alcance de todos. Só dos melhores, dos que respiram
e dão a respirar poesia:
AS NUVENS
De noite, quando
ninguém as vê, as nuvens descem ao rio.
Inclinadas sobre
ele, recolhem a água que mais tarde irá chover sobre a terra.
Às vezes, em
plena tarefa, caem algumas nuvens, e o rio leva-as.
Quando chega a
manhã, todos podem ver passar as nuvens caídas.
Elas derivam à
tona das águas, lentos barquinhos de algodão, fitando o céu.
Eduardo Galeano, in O Caçador de Histórias, trad. José
Colaço Barreiros, Antígona, Setembro de 2017.
2 comentários:
Quero para mim!
E faz muito bem.
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