sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O CAÇADOR DE HISTÓRIAS

A história por detrás de O Caçador de Histórias (Antígona, Setembro de 2017) é contada por Carlos E. Díaz na nota da edição argentina. Eduardo Galeano (n. 1940 – m. 2015) trabalhou no livro entre os anos de 2012 e 2013, tendo a edição sido retardada devido ao precário estado de saúde do autor. À secção de histórias coligidas sob o título genérico Moinhos de Tempo, foram entretanto acrescentados mais três conjuntos: Os Contos Contam, Prontuário Quis, Quero, Queria. O resultado é impressionante, tanto pela extensão como pelas características que o volume acaba por assumir. O Caçador de Histórias não é uma simples recolha de contos. Na verdade, estamos perante uma súmula do pensamento a que Galeano habitou os seus leitores. Em defesa dos desprotegidos, em defesa da natureza e de um ecologismo social, contra o capitalismo selvagem e denunciando as repercussões devastadoras do mundo globalizado, nestas histórias o anedótico mistura-se com a fábula, memórias pessoais convivem com mitos, factos e devaneios servem uma mesma causa enquanto exemplos morais de uma demanda política: tornar visível o invisível, dar voz a quem a não tem. Galeano revolta-se contra a impunidade dos criminosos, indigna-se com as injustiças sociais e consequentes misérias de um mundo desequilibrado, denuncia e acusa atrocidades através de pequenos textos cuja força maior é a de serem exemplo simbólico do tema em discussão. Um desses temas, dos mais recorrentes, é o contraste entre o mundo dito civilizado e os costumes indígenas, tido como bárbaros pela arrogância do colonizador. Exemplo:

COSTUMES  BÁRBAROS

   Os conquistadores britânicos ficaram com os olhos esbugalhados de assombro.
   Eles provinham de uma nação civilizada, onde as mulheres eram propriedade dos maridos e lhes deviam obediência, como a Bíblia mandava, mas na América foram encontrar um mundo às avessas.
   As índias iroquesas e outras revelavam-se suspeitas de libertinagem. Os maridos nem sequer tinham o direito de castigar as mulheres que lhes pertenciam. Elas tinham opiniões próprias e bens próprios, direito ao divórcio e direito de voto nas decisões da comunidade.
   Os brancos invasores já não conseguiam dormir em paz: os costumes das selvagens pagãs podiam contagiar-lhes as mulheres.

A ironia e o humor são ferramentas úteis a serviço de uma desconstrução dos preconceitos culturais, ao mesmo tempo que servem para desmascarar os estereótipos e o etnocentrismo cultural que de há muito contaminam o modo de olhar o outro, o diferente, o que se opõe não por ser oposto, mas por ser desviante. Num dos textos finais, de índole autobiográfica, Galeano revela que uma das razões que mais o influenciaram a ser escritor foi a de dar a ver a quem não teve essa oportunidade. «Escrever cansa, mas consola», afirma. Há um espírito de missão que atravessa os seus textos, simples mas penetrantes, perspicazes e inteligentes, textos que despoluem o pensamento com uma extraordinária capacidade de síntese. «Os anónimos contadores de histórias é que me ensinaram tudo o que sei», confessa. E se o pouco ensino formal que teve deu-lhe, pelo menos, o saber ler e escrever, a cultura do saber ouvir terá sido, porventura, das que mais beneficiaram o seu enormíssimo talento. Não importa o que de mentira ou de verdade exista numa destas histórias, conquanto a sua moral seja sempre verdadeira. Importa a mensagem subentendida no texto, essa impõe-se que seja verdadeira. E para ser verdadeira implica que seja eticamente irrepreensível. Veja-se como a mensagem ecológica ganha numa pequena história a dimensão de uma causa global:

UMA NAÇÃO CHAMADA LIXO

   Em 1997, o navegador Charles Moore descobriu a sul do oceano Pacífico um novo arquipélago, feito de lixo, que já era três vezes maior do que toda a Espanha.
   As cinco ilhas que formam esta imensa lixeira alimenta-se de plástico, pneus usados, ferro-velho, resíduos industriais e minerais, e muitíssimos outros desperdícios que a civilização atira das cidades para o mar largo.
   No ano de 2013, iniciou-se uma campanha para outorgar a categoria de Estado a esta nova nação, que bem poderia ter bandeira própria.

Eduardo Galeano fala ao leitor com o tom dos grandes mestres, num livro que é também um arquivo de factos contra o esquecimento. A sua simplicidade não provém de uma simplificação dos problemas ou de um simplismo ingénuo, ela é a consequência de uma vida de viagens exteriores e interiores, viagens que lhe ofereceram retratos do mundo ao mesmo tempo que o obrigaram a pensar-se a si próprio nesse mesmo mundo. A sua simplicidade é sinal de uma maturidade que não está ao alcance de todos. Só dos melhores, dos que respiram e dão a respirar poesia:

AS NUVENS

   De noite, quando ninguém as vê, as nuvens descem ao rio.
   Inclinadas sobre ele, recolhem a água que mais tarde irá chover sobre a terra.
   Às vezes, em plena tarefa, caem algumas nuvens, e o rio leva-as.
   Quando chega a manhã, todos podem ver passar as nuvens caídas.
   Elas derivam à tona das águas, lentos barquinhos de algodão, fitando o céu.



Eduardo Galeano, in O Caçador de Histórias, trad. José Colaço Barreiros, Antígona, Setembro de 2017.