quinta-feira, 26 de outubro de 2017

VEM NA ANTOLOGIA


A MINHA GERAÇÃO


Não é preciso fazerem nada.
As coisas fazem-se sozinhas, as pessoas falam e as construções
acontecem. O filho do político também é político. Trata-se de
mera coincidência: foi convidado enquanto esperava o pai junto
à máquina de fotocópias. Por certo levava consigo o documento
de identificação — preparava-se para tirar uma fotocópia da sua
certidão de doutoramento — e aproveitou para tirar uma fotocópia
de tudo o que tinha no bolso, incluindo do próprio bolso, vazio,
porque o filho de um político deve ser exemplo de pobreza.

Foi então que o sol veio, em raio, montado por coriscos sibelinos.
Todos viram nisto um sinal — uma anunciação — e uma lágrima aflorou
ao canto de um olho. Um discurso foi feito, e vegetais distribuídos — uma
cenoura por cada advérbio, duas beringelas por cada palavra correctamente
pronunciada — e no fim a música foi chamada a abrilhantar o prodígio.
Falou-se um pouco dos indicadores económicos — a situação do país
ainda não é perfeita, mas com esta nova geração de homens a coisa
vai lá. É importante que o filho do político tenha participado em 
vindimas, ainda adolescente, para saber o que custa a vida dos outros.

Falta falarmos das vacas, stressadas e com menos leite por causa
do barulho das auto-estradas a caminho da excelência. Afinal o milagre acima
referido foi contratado a uma empresa de eventos, e ligeiramente sobrefacturada,
o que em nada diminuiu o seu valor de fenómeno existencialista, como disse
o pai do filho do político, que leu Heidegger e tem dentes de rola. Vamos
dançar, como Nietzsche propôs, já não me lembro em que livro, porque
quando a gente lê muito depois não tem tempo para estas coisas (o céu
desce a sua brisa sobre a nossa fronte e as andorinhas espadanejam).

E se fôssemos todos convidar-nos uns aos outros para aquários com
écrã filho da puta e aumentássemos os nossos salários cem por cento,
como fazem os políticos brasileiros? Não seria boa ideia?

Na verdade, as montanhas e os vigilantes dos mares não sabem
que estamos aqui, esperando por eles e com vontade de fazer a
primeira revolução a sério da história. É preciso informá-los, para
que eles saibam, porque se não o fizermos alguém vai ter a mesma
ideia e convida os artistas todos primeiro. Usem os recursos com
inteligência, porra!

Conheço pessoas que trabalham muitas horas por dia.
Mais de oito, e mesmo mais de doze horas por dia.
São pessoas muito importantes para as economias de algumas
famílias, o que infelizmente não serve para evitar a chegada da crise
aos nossos fodidos corações agoniados. Há máquinas doces,
calma aí, nem todas são desesperadas. Abrem-se as torneiras e saem
estratégias musicais e pacientes malhas de conversas que podemos
despencar nas redes sociais. Se não for por mal não há problema.
Somos inocentes, ainda, porque é saboroso ser confrontado com
a desgraça de uma vez só e em dose moral. Vejamos o que quero dizer:
não, é melhor não. Ainda é muito cedo, e podemos lavar as cortinas
em vez de ficarmos a queixar-nos do cheiro das casas de banho nas
artérias mais movimentadas do nosso glamouroso corpo brilhante.

Um homem passa e nunca mais desaparece.


Rui Costa, in Mike Tyson Para Principiantes - antologia poética, org. André Corrêa de Sá (coordenador da edição), António Aguiar Costa, Cláudia Souto, Margarida Vale de Gato, Assírio & Alvim, Setembro de 2017, pp. 118-119.

3 comentários:

Anónimo disse...

Este poeta é ainda «intocável». Ninguém ousa comentar os seus poemas. Leitores fúteis que por cá aparecem.Deixe-se de Dou(i)das Correrias.

hmbf disse...

És tão frustrada, mulher.

hmbf disse...

Leitor fútil que continuas aparecendo, aguardamos pelos teus ousados comentários, isto é, pelo teu ousado combate. E intocável é a puta que te pariu.