Adelaide Ivánova (n. 1982) é uma jovem poeta brasileira
de quem foi publicado em Portugal um livro com o título O Martelo (Douda
Correria, Fevereiro 2016), objecto com uma carga simbólica sugestiva que tanto
pode remeter para a força revolucionária do proletariado como para o poder de
sentenciar nas mãos de um juiz. Para o caso, esta última imagem interessa-nos
mais.
No livro de Ivánova a mulher é o centro das atenções, a
mulher no lugar de vítima, a mulher violentada, abusada. Aparecem então a
figura da delegada, que não leva a mulher a sério, a escrivã a fazer perguntas
como se houvesse matemática e geometria numa situação de estupro, os médicos
que examinam a mulher enquanto se questionam se vão beber um copo depois do
expediente… Aparece também um juiz.
Recentemente, assistimos no nosso país a mais um triste exemplo
do que é possível acontecer nos tribunais da República. Um acórdão do Tribunal
da Relação do Porto, ao que julgo saber assinado por um juiz e por uma juíza,
justificam com o adultério praticado pela vítima uma brutal situação de
violência doméstica. Cito: «Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado
à honra e dignidade do homem». Questiono-me se agredir uma mulher à mocada não
será um gravíssimo atentado tanto à honra como à saúde ou integridade física da mulher. Pelos vistos,
a honra tem nestes casos um valor que a vida não tem. O que é, no mínimo, uma
peculiar hierarquização de valores.
Mas o acórdão vai mais longe, referindo sociedades onde a
mulher adúltera é lapidada até à morte e citando a Bíblia. Qualquer pessoa entende
a estupidez disto tudo, não sendo sequer necessário acusar de parcialidade ou
literalidade o juiz que cita a Bíblia como se a Bíblia fosse um manual de
coerência cívica (mais ainda num estado laico). Basta pensar que as tais sociedades aludidas são aquelas
contra as quais todos nós, pelo menos assim julgava eu, nos unimos em termos de
repúdio e de indignação. Essas sociedades são para nós uma personificação do
mal, não servem como exemplo de boas práticas. Não está em causa compreender a
dor do traído, está em causa ser injustificável essa dor servir de pretexto
para a agressão do traidor.
Voltando a Adelaide Ivánova, entre vários dos seus poemas
que poderíamos sugerir para citação num futuro acórdão do Tribunal da Relação
do Porto, há um especialmente revelador. Envia-se daqui, ao cuidado do juiz e
da juíza que assinaram a aberração supradita:
a sentença
duas releituras de duas odes de ricardo reis
I
pesa o decreto atroz, o fim certeiro.
pesa a sentença igual do juiz iníquo.
pesa como bigorna em minhas costas:
um homem
foi hoje absolvido.
se a justiça é cega, só o xampu é neutro:
quão pouca diferença na inocência
do homem e das hienas. deixem-me em paz!
antes encham-me
de vinho
a taça, qu’inda que bem ruim me deixe
ébria, console-me a alcoólica amnésia
e olvide o que de fato é tal sentença:
a
mulher é culpada.
II
pese do fiel juiz igual sentença
em cada pobre homem, que não há motivo
para tanto. não fiz mal nenhum à mulher e
foi
grande meu espanto
quando ela se ofendeu. exagerada, agora
reclama, fez denúncia e drama, mas na hora
nem se mexeu. culpa é dela: encheu à brava
a
garbosa cara.
se a justiça é cega, só a topeira é sábia.
celebro abonançado o evidente indulto
pois sou apenas homem, não um monstro! leixai
à mulher o trauma.
Adelaide Ivánova (n. Recife, Pernambuco, 1982), in O
Martelo, Douda Correira, Fevereiro de 2016, s/p.
5 comentários:
Pelo que li o Juiz não terá justificado, terá é considerado que devido ao estado em que se encontrava o marido que teria entrado em depressão ao se ver traído, a pena em que foi condenado na primeira instância se deveria manter e não ser agravada
Objectivamente será sempre mau um marido agredir a mulher ou a mulher agredir o marido ou um homem agredir o seu companheiro ou uma mulher agredir a sua companheira, agora dentro do mau há pior, alguém que agride gratuitamente ou porque o seu clube de futebol perdeu deverá em princípio ser objecto de maior censura que alguém que agride porque se sente traído e age num estado de depressão...e é condenado na mesma
não me pareceu muito bem foi aquela citação da Bíblia...(será que se fosse um homem adúltero a citação também se aplicaria?)
eh pá, é tudo mau naquele acórdão
tudo
não tem mesmo justificação nenhuma
nem citar a Bíblia, nem códigos de antanho, nem sociedades ancestrais
é tudo péssimo
Gostei bastante de referência a um Código Penal de 1886. Como quem diz "até estou a ser mauzinho com o seguido, isto há uns tempos passava incólume". Que filho da puta.
Já não foi a primeira vez que este juiz diz de "sua justiça" saliento que o acórdão é uma decisão colectiva, mais dois juízes concordaram com aquilo, o que torna a situação ainda mais grave. Há aqui uma clara violação da lei e da Constituição, o estado é laico ponto. Fomos motivo de chacota internacional, completamente justificada, uma vergonha de estado. Este tipo de pseudo moralismos não pode caber na aplicação da justiça. Nem todos os acórdãos são publicados, suspeito que pelas mãos deste sr. muita gente tenha sofrido a bom sofrer. Que vá "julgar" para lugares em que a religião é equivalente à lei, peça desculpa e desapareça.
Que desapareça apenas, não precisa de pedir desculpa. :-)
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