domingo, 17 de dezembro de 2017

2017, ANO ESQUIZÓIDE


   O ano começou como sempre começa um ano, a contar mortos. Adeus Mário Soares, obrigadinho. E os sonetos de amor da hora triste, de Álvaro Feijó, entraram para sempre no imaginário popular da esquecida poesia portuguesa. Estávamos em Janeiro, ainda se faziam balancetes, promessas, ainda se contava a esperança pelos dedos. A excepção tinha nome de actriz, Meryl Streep com um “powerful speech” sobre Trump fazia adivinhar o que aí vinha: 2017, ano de Trump.
   Para amenizar o nojo, foram chegando às livrarias inúmeras soluções votadas à felicidade dos leitores. Ele era o segredo dinamarquês, dito Hygge, ele era o segredo sueco, dito Lagom, ele era o segredo português, dito Carnaval de Torres Vedras. Algures, um pobre livreiro queixava-se do preço a que está o vinho em esplanadas com vista para o mar. A felicidade sai cara, é o que vos digo.
   Depois perdemos John Hurt, o rosto inesquecível de 1984. Não perdemos o rosto. Somos cada vez mais o rosto de John Hurt em 1984, sem que o notemos enquanto o disfarçamos com uma ida à barber shop da esquina. Um prémio para o barber shopper que consiga fazer alguma coisa com os cabelos de Trump e Kim Jong-un! Talvez uma esfregona.
   Por falar em Kim, morreu Ren Hang. Era chinês, dos bons, tinha apenas 29 anos. Fica a pergunta: por que se mata um conceituado jovem artista plástico chinês? Lá como cá, talvez as formalidades jurídicas o expliquem.
   Vivemos num mundo cada vez mais afogado em formalidades jurídicas. Servem para tudo. Em pleno século XXI, ano da graça ou do demónio de 2017, tivemos em Portugal acesso a acórdãos de juízes que mais parecem ter saído de penas medievais, tivemos lá fora notícias como esta: “Juíza trava deportação de pessoas acabadas de chegar aos Estados Unidos”. Tivemos um eurodeputado polaco para quem as mulheres são menos inteligentes do que os homens. Tivemos Dijsselbloem a acusar-nos de desperdiçarmos dinheiro com copos e gajas. E assim vai o mundo, a discutir a eutanásia. Deste mundo? Duvido.
   Este é o mundo que subitamente se choca com a linguagem nos livros de valter hugo mãe, com cadernos de actividades para meninos e para meninas, com as viagens de finalistas dos nossos adolescentes (todos tão bem criadinhos, Senhor), com imprecações ao balcão das finanças, com coisas assim tipo conferências de Jaime Nogueira Pinto. Não sei se estão recordados, mas a discussão está mais ou menos neste nível: «Se não pedimos para nascer também não temos o direito de determinar quando vamos morrer». E pronto, bem-vindos sejam ao mundo… em 2017.
   Chuck Berry, fazes-nos falta. Nada se compara às tuas noções de rigor. Rock, rock, cada vez mais rock. Abaixo o Putin e o Trump e o Kim e o dia dos namorados e o dia das bruxas e o yoga e o reiki e o feng shui e o mindfulness e o coaching e o parenting e o ho’oponopono e as mil e uma dietas engendradas para um ocidente untuoso que se está nas tintas para 1,4 milhões de crianças subnutridas, à beira de morrerem com fome, para o tráfico de escravos na Líbia, para a exploração de trabalho infantil no Congo, para o genocídio em Myanmar.
   Mais uma vez a excepção tem nome de actriz: «O meu trabalho consiste em estar num ecrã, não em frente.» Catherine Deneuve. Saravá.
   É a vida no Facebook, no Tweet, no Instagram, enquanto por cá ficamos a saber que o país deve muito a um tal de Núncio. Jamais sairemos desta mediocridade. Um arquivo de factos que venha a ser feito de 2017 deixar-nos-á, daqui a 5, a 10, a 15, 20 anos, estupefactos com tamanho infantilismo, com tanta falta de bom senso, com o realismo da desinformação, com a vitória inapelável das fake news (afinal a Svetlana Alexijevich morreu ou não?).
   Morreu Ievguêni Ievtuchenko, a poesia não interessa. Passemos ao próximo. Morreu Maria Helena da Rocha Pereira, parece que foi há anos. Quem lê ainda os clássicos gregos? Morreu Bruce Langhorne. Esqueçam. Morreu o realizador Jonathan Demme, morreu Sam Shepard, Jerry Lewis, Harry Dean Stanton, Tom Petty, o Chris Cornell. Estes, desconfio, não morrerão tão depressa. Morreu Vito Acconci e A. R. Penck, a arte está mais pobre - ainda que poucos dêem por isso.
   Calma. Marcelo abraçar-vos-á a todos, Marcelo reconfortar-vos-á, Marcelo, Marcelo, Marcelo, Marcelo enjoa de tanto Marcelo. Vai uma selfie? Marcelo mistura martelo com marmelada, marmelada martelada. Fazes-nos falta, Baptista-Bastos. E tu também, Manuel de Seabra. E muito tu, Armando Silva Carvalho. E mais tu, Alípio de Freitas. Ao contrário de papas e de Fátima e de intrujices quejandas que não nos fazem falta alguma.
   Com um coração novo no Salvador Sobral, isto vai lá. Teremos autocarros cheios de universitários a cantar o Amar Pelos Dois em noite de queima das fitas, enquanto no banco de trás este filmará aquele a apalpar aquela e alguém virá dizer: violação. E outro replicará: mentira, estavam a ouvir o Amar Pelos Dois. Admirem-se. 
   Estranho, estranho, do mais estranho, é que a palavra "assédio" não tenha sido escolhida pela Porto Editora para palavra do ano. Indignem-se. Trump, Melania e Ivanka escutarão as vossas preces.
   As grandes questões para 2018 serão: durará a geringonça mais um ano? O que é feito de Marinho e Pinto? Os AC/DC continuarão sem o Malcolm Young? E os Xutos sem o Zé Pedro? Entraremos em 2018 com estas e outras dúvidas como estas no ar. Voltaremos a ter autarcas ex-reclusos, muita seca, incêndios, o Prémio Camões, e o terrorismo perdurará mais ou menos assim: 

…Londres calou Manila calou Manchester calou Jalalabad calou Cabul calou Paris calou Yahyakhil calou Istambul calou Balkh calou Estocolmo calou Lahore calou Daguestão calou Berlim calou Jacarta calou Madrid calou Peshawar calou Bruxelas calou Ancara calou Nice calou Sousse calou Grand-Bassam calou Orlando calou Shabqadar calou São Petersburgo calou Mohmand calou Diyarbakir calou Mogadíscio calou Damasco calou Dikwa calou Ninive calou Borno calou Charsadda calou Ouagadougou calou Ceel Cadde…

   Fim de citação.
   Não teremos o Pedro Rolo Duarte nem o Medina Carreira nem o Pedro Passos Coelho a declamar discursos (disto não estou tão certo). Teremos o Henrique Raposo e o Quintino Aires. Este país é sempre a subir. Teremos o D. Manuel Clemente a abençoar o Web Summit no Panteão Nacional. Duvidam? Roubam-nos os paióis para depois devolverem tudo com juros. Quem vê isto, acredita em qualquer coisa.
   2017, ano de fogo, ano de mortos, ano de culpas, ano de drones, ano de Tancos. Está a terminar e não vai deixar saudades. Nenhumas. Assim que me lembre, foi dos melhores piores anos que tive. A título pessoal, tudo na mesma como a lesma. Já não é mau. Estamos vivos. Olhando à volta, até parece um luxo. Não tão raríssimo, mas um luxo.

   Viva a Catalunha! 

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