DESALMADAS
Aristóteles sabia o que dizia:
— A fêmea é como um macho disforme. Falta-lhe um elemento essencial: a alma.
As artes plásticas eram reinos proibidos aos seres sem alma.
No século XVI, havia em Bolonha quinhentos e vinte e quatro pintores e uma pintora.
No século XVII, havia na Academia de Paris quatrocentos e trinta e cinco pintores e quinze pintoras, todas esposas ou filhas de pintores.
No século XIX, Suzanne Valadon foi vendedeira de hortaliça, acrobata e modelo de Toulouse-Lautrec. Usava corpetes feitos de cenouras e partilhava o seu estúdio com uma cabra. Ninguém se surpreendeu que ela tivesse sido a primeira artista que se atreveu a pintar homens nus. Tinha de ser uma chanfrada.
Erasmo de Roterdão sabia o que dizia:
— Uma mulher é sempre mulher, o que é o mesmo que dizer: é louca.
Imagem ao alto: pormenor do atelier de Suzanne Valadon, que pode hoje ser visitado no Museu de Montmartre.
Le Déjeuner sur l'herbe, 1863
FORA DE SÍTIO
Uma cena típica de domingo é o quadro que dá fama a Édouard Manet: dois homens e duas mulheres num piquenique na relva, nos arredores de Paris.
Nada de estranho, salvo um pormenor. Eles estão vestidos, impecáveis cavalheiros, e elas estão completamente nuas. Eles conversam entre si, algum tema sério, coisa de homens, e elas têm menos importância do que as árvores da paisagem.
A mulher que aparece em primeiro plano está a olhar para nós. Talvez nos pergunte, do alto do seu alheamento, onde estou, o que faço aqui.
Elas estão a mais. E não é só no quadro.
NOITES DE HARÉM
A escritora Fátima Mernissi viu, nos museus de Paris, as odaliscas turcas pintadas por Henri Matisse.
Eram carne de Harém: voluptuosas, indolentes, obedientes.
Fátima viu as datas dos quadros, comparou, comprovou: ao mesmo tempo que Matisse as pintava assim, nos anos vinte e trinta, as mulheres turcas tornavam-se cidadãs, entravam na universidade e no parlamento, conquistavam o divórcio e arrancavam o véu.
O harém, prisão de mulheres, tinha sido proibido na Turquia, mas não na imaginação europeia. Os virtuosos cavalheiros, monogâmicos na vigília, mas polígamos no sonho, tinham entrada livre nesse exótico paraíso, onde as fêmeas, tontas e mudas, estavam encarregadas de dar prazer ao macho carcereiro. Qualquer medíocre burocrata fechava os olhos e via-se logo transformado num poderoso califa, acariciado por uma multidão de virgens desnudadas que, fazendo a dança do ventre, suplicavam a dádiva de uma noite junto do seu dono e senhor.
Fátima tinha nascido e crescido num harém.
Eduardo Galeano, in Mulheres, tradução de José Colaço Barreiros, Antígona, Novembro de 2017, pp. 122, 213, 222. Sobre Fatema Mernissi: aqui.
Sem comentários:
Enviar um comentário