Por esta altura do ano, já todos os balanços foram
realizados. Cada ser humano deste mundo encarrega-se de colocar o ano que
passou num lugar distante, guardando factos, acontecimentos, situações,
recalcando outras tantas ocorrências, procurando esquecer o que é do
esquecimento e recordar o que é da memória. Uns listam filmes, cds,
espectáculos, livros, outros listam palavras, homens, imagens, lugares, os
feitos, as realizações, as pessoas, os eventos. Listam-se acidentes, tragédias
e crimes, ficam de fora as vítimas. Tudo pode servir o nosso gosto de organizar
ou o nosso pesadelo de lembrar. Os resumos das redes sociais são especialmente
reveladores de uma ausência de lágrimas na história do mundo, a qual é cada vez
mais feita de sorrisos e de poses artificiais. Mesmo quando aparecem, as lágrimas são
de uma comoção de tal modo plástica que não deixa espaço à reflexão. E tudo fogo de artifício e alegria e bom viver. Assim
filtrado, o mundo até parece aprazível, um sítio onde apetece estar, não aquele
lugar distante que passou e é bom que tenha passado.
Em 2017, a editora Antígona anunciou que iria publicar
uma colecção de obras de Eduardo Galeano. Foi uma das melhores notícias que
tive. Galeano é um Mestre, em maiúscula. Saíram As Veias Abertas da
América Latina, O Caçador de Histórias e Mulheres. Noutros tempos, chamaríamos
a isto um acontecimento literário. Seria celebrado com gosto e inumeráveis
razões. O uruguaio Galeano não é um escritor qualquer, estar acessível
em língua portuguesa é um bem inestimável. Nasceu em Montevideu no dia 3 de
Setembro de 1940, e na mesma cidade despediu-se desta vida a 13 de Abril de
2015. Falaram dele para Nobel da Literatura. Não aconteceu, como quase sempre
sucede aos melhores. Ficção, história, jornalismo, filosofia política,
misturam-se nos seus livros com naturalidade, elegância, clareza. As Veias
Abertas da América Latina (1971) valeram-lhe prisão e exílio durante o golpe
militar que tomou conta do Uruguai entre 1973 e 1985. Estava na lista dos
esquadrões da morte, uma dessas que raramente se faz em época de ano novo.
Mulheres é um volume especial. Resulta da compilação de
vários textos que foram surgindo em diversas obras do autor, tendo por tema
central a mulher. São pequenas histórias, verbetes biográficos, um inventário de
mulheres que por alguma razão se destacaram num mundo regido por homens.
Algures entre a lenda e a verdade histórica, estes textos não são mero
panegírico do feminino. São, antes, o retrato cru da realidade machista
que desde sempre nos governa. Lá estão Safo e Joana d’Arc, Mata Hari e Eva
Perón, mulheres que tiveram de disfarçar-se de homens para poderem fazer o que
lhes era proibido enquanto mulheres, mulheres que obedeceram e se sujeitaram ou
que recusaram e desobedeceram, pagando cada uma delas com as mesmas consequências: o
ostracismo dos homens. Estão a escrava María de la Cruz, cubana anónima que
agradece a Fidel ter podido aprender a ler e escrever aos 106 anos, porque
antes da revolução «os patrões mandavam para o cepo os negros que queriam
letras» (p. 43), Alexandra Kollontai, «a única mulher com cargo de ministro no
governo de Lenine», graças a quem «a homossexualidade e o aborto deixaram de
ser crime, o matrimónio deixou de ser uma condenação perpétua» (p. 95), Rosa
Maria, levada de África para o Brasil num navio negreiro, violada por donos e
patronos, comprada, vendida, a primeira negra alfabetizada do Brasil, que
acabou por desaparecer em Lisboa nos cárceres da Santa Inquisição.
Num excerto destacado de Patas arriba. La escula del
mundo al revés (1998), os números não desmentem a tradição do monopólio
masculino: mulher é sinónimo de mentira, de luxúria, Deus manda que tais
pecados sejam tratados com fogo. «Um dos mitos mais antigos e universais, comum
a muitas culturas de muitas épocas e de diferentes lugares, é o mito da vagina
dentata. O sexo da fêmea como boca cheia de dentes, insaciável boca de piranha
que se alimenta de carne de machos» (p. 153). Assim teriam querido uma em cada
três mulheres casadas que nos países do sul apanham pancada dos maridos, assim
teriam querido cada uma das mulheres violadas nos EUA (uma a cada seis minutos)
ou no México (uma a cada nove minutos). 18 mulheres assassinadas em Portugal,
durante o ano que passou, e das quais não se fazem balanços. Não aparecerão em
livros, embora livros como este também as representem. 1,6 homicídios por mês, a
média da morte, embora todos os dias, afirmam os registos, 14 mulheres sejam
vítimas de violência em Portugal. Outro número: 9 em cada 10 vítimas de
violência doméstica não pedem ajuda ao sistema público de apoio à vítima.
Eis um balanço que está por fazer, o das mulheres que
foram assassinadas em 2017 por seus maridos ou namorados, vítimas de um amor
sem fundamento, algumas delas reiteradamente agredidas ao longo dos anos, executadas
das mais diversas e cruéis formas depois de tortura prolongada. Foram mártires
de uma causa que o Deus das igrejas não reconhece, tão ágil que sempre foi a
relegar a mulher para o plano da subjugação. Presas ao matrimónio, escravas do
prazer masculino, condenadas à castidade, as mulheres que nascem servas e
servas têm de morrer. Que crimes terão cometido? De que males padecerão para
que se justifiquem acórdãos de juízes a desculpabilizar os agressores? Mártires
de uma praga cultural, civilizacional, essas mulheres que ousaram ser humanas
morreram não para que as esqueçamos, mas para que nos lembremos diariamente da
maldição há muito sobre nós lançada. Não poderão morrer mudas, para sempre
silenciadas, como se tivesse sido por nada o que sofreram.
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