sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A CASA DA ARANHA


Quando Paul Bowles se fixou em Tanger, no ano de 1947 (n. 1910 – m. 1999), não deixou para trás apenas uma infância marcada pela austeridade paterna. A primeira viagem a Marrocos dera-se em 1931, por sugestão de Gertrude Stein. Em 1937, Bowles já granjeara reputação como compositor. O encontro com Tristan Tzara, na Paris de 1929, abrira-lhe as portas de um mundo muito mais desprendido do que aquele que conhecera na América natal. Daqui trouxe os primeiros estudos de literatura e de música, desenvolvidos posteriormente ao serviço das experiências dadaístas levadas a cabo por um Kurt Schwitters. Mas foi na Europa, e depois em Marrocos, que cresceu e se afirmou tanto como músico como enquanto escritor. Sobre o casamento com a dramaturga Jane Auer, em 1938, e a mudança definitiva para Tanger, quase dez anos depois, já muito se especulou. Quem estiver interessado em detalhes biográficos poderá procurá-los nas “Memórias de um Nómada” (Assírio & Alvim, Março de 2007) ou em “Viagens” (Quetzal, Julho de 2013). Na ficção encontrará tanto de biografia como de imaginação, o que não é despiciendo tendo em conta que o romance de estreia, “O Céu que nos Protege” (Quetzal, Julho de 2017), foi inicialmente recusado por não ser considerado romance. Seguiu-se “Deixa a Chuva Cair” (Assírio & Alvim, Março de 2007), também passado em Tanger, e “A Casa da Aranha” (Quetzal, Julho de 2014), desta feita com a cidade de Fez em pano de fundo.
Concluído em 1955, “A Casa da Aranha” acompanha muito de perto a actividade do Partido Istiqlal no momento mais crítico da independência de Marrocos (ocorrida, precisamente, em Março de 1956). A Fez do romance é uma cidade sob pressão, devastada tanto fisicamente como pela desconfiança gerada entre os seus habitantes. O ambiente é de conspiração e de dúvida, de suspeição e de medo. Aos cenários de destruição próprios de um conflito político descambado para a violência junta-se a paisagem miserável de um povo colonizado, explorado e maltratado pela potência colonial. É desse núcleo desprezado, violentado, ferido no seu orgulho e na sua cultura, que surde Amar. Com apenas 15 anos, este jovem marroquino deambula pela cidade em busca de trabalho, é severamente açoitado pelo pai, fecha-se em conjecturas acerca das injustiças do mundo e vive enclausurado numa solidão que não lhe fere o orgulho, mas alimenta preconceitos acerca dos outros, sobretudo desses outros que são ricos, poderosos, estrangeiros na língua e nos costumes. Amar tem um irmão e uma irmã, tem um pai e uma mãe, mas é quase como se não tivesse. Sente-se distante e desenraizado, o Islão, recebido de um modo informal num jovem analfabeto, é para ele uma espécie de modelo a partir do qual se permite avaliar a vida, a existência, as acções, o mundo:

«Tal como a maioria dos rapazes e dos homens novos que haviam nascido em Fez desde que os franceses tinham instalado a sua Fez rival a poucos quilómetros do exterior das muralhas, Amar nunca adquirira o hábito de ir a uma mesquita e de orar. Para todos, a não ser os mais abastados, a vida tornara-se um assunto anárquico, uma barafunda, com as pessoas a deixarem as suas famílias e a irem trabalhar para outras cidades, ou a alistarem-se no exército, onde tinham a certeza de que teriam de comer» (p.97).

É neste cenário de degenerescência cultural que Paul Bowles coloca a origem de um ódio à potência colonizadora, o qual, alimentado pelo calculismo do fanatismo religioso, manipula os corações dos homens dispondo-os uns contra os outros. No entanto, a perspectiva do romance não é justificativa, nem parcial, nem unívoca. O encontro fortuito de Amar tanto com os membros do Istiqlal como com o escritor norte-americano John Stenham, e a bela e aventureira Polly Burroughs, beneficiarão um esclarecimento íntimo quanto às reais motivações do ser humano. “A Casa da Aranha” acolhe as fragilidades e as contradições da acção humana quando pensada colectivamente. Ali e acolá as dúvidas operam o desconforto: o que é maior, o sultão ou o islamismo, o Istiqlal ou Alá, a política é mais importante do que a religião? Maior que todos, a vida humana. John Stenham e Polly Burroughs, aka Madame Lee Veyron, são, de certo modo, o reforço desta desacreditação do político e do religioso perante o desassossego da natureza humana. O que ele representa de reflexivo, ela apresenta pela acção. Não tomando partido por nenhuma das partes, são tão críticos da implacável ocupação francesa como dos métodos do Istiqlal (que, a páginas tantas, Stenham, dissidente comunista, compara aos métodos do marxismo-leninismo).
Do caos exterior à pacificação interior, é este o movimento proposto pelo romance de Paul Bowles. Quando, fugindo dos motins e da histeria em Fez, a apreensão dos turistas toma conta de Polly Burroughs, John Stenham diz-lhe que estará onde estão os nativos. Nativos, não marroquinos, não muçulmanos. Simplesmente nativos. Para onde ir? E seguem, na companhia de Amar e de um amigo, para Sidi bou Chta. O que há nesse lugar? Um festival étnico, resquício derradeiro das origens ameaçadas. Durante a viagem de autocarro, Polly olha os passageiros e pensa:

«O que ela achava surpreendente a respeito destas pessoas era a impressão de limpeza que lhe davam. Não eram apenas os corpos e roupas delas que pareciam limpos (o interior do autocarro cheirava a roupa lavada secando ao sol); era outro tanto as expressões nos seus rostos, a aura do seu espírito colectivo; faziam-na pensar na pureza dos riachos de montanha, nas regiões intocadas» (p. 385)

As irmandades Aïssaoua, Haddaoua, Jilala, Hamacha, Derqaoua, Guennaoua, reúnem-se no festival de Sidi bou Chta para celebrarem a cultura. Aquele é um lugar de encontro com o passado num país onde apenas o presente parece contar. Os tambores e as danças lembram a existência de um outro mundo, com necessidades e padrões que transcendem os ditames da política e a doutrina religiosa. Lugar de encontro ontológico, portanto, na raiz de uma comunhão que deixou de ser regida pelo lucro individual. Poderá haver um lugar assim? Serão capazes de viver as pessoas num lugar sem lucro nem proveito? A impressão de limpeza, como a pureza dos riachos de montanha, contrasta fortemente com a paisagem miserável outrora descrita de «habitações, feitas com caixotes de embalagem, arbustos espinhosos e latas de óleo, amarrados uns aos outros com cordas e tiras de trapos» (p. 309).Este é o lugar da civilização, frágil como a teia de aranha. O da cultura é outro, limpo e puro como riachos de montanha.

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