terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

HOMO SAPIENS


   A minha colaboração para as Publicações & etc limitou-se a participar e ficcionar a partir de Homo Sapiens, «operação realizada por Alberto Pimenta» em 31 de julho de 1977 à tarde numa jaula do Palácio dos Chimpanzés do Jardim Zoológico de Lisboa.
   Homo Sapiens saiu nesse mesmo ano em edição com fotos do poeta sentado numa cadeira de pau ao lado de um banco branco, metálico, daqueles que sobem e descem sobre um eixo central e que lhe servia de mesa para livros e garrafa de vidro, fixando sem expressão os visitantes desprevenidos que paravam espantados, intrigados, diante do anónimo pobre diabo fechado numa jaula entre duas jaulas, cada uma ocupada por um dos seus moradores habituais, temíveis chimpanzés cada vez mais zangados porque ninguém lhes ligava, os mirones só olhavam algo que eles não viam, não entendiam e que por isso os irritava. Uma mulher assustada, temendo imoralidades, arrastou a filha para longe de ali, proibindo-a de olhar. O público em geral, pelo contrário, ao dar de caras com aquela cena, aproveitava a disponibilidade dominical para filosofar. Um casal não saía dali e demorava-se congeminando em voz alta:
   «É um macaco que sabe ler.»
   «É algum literato.»
   «Em todo o caso é maluco.»
   «É estrangeiro. Estão aí metidas nisso umas meninas estrangeiras.»
   «Assim já percebo.»
   "Meninas estrangeiras", ex-alunas e ainda admiradoras de um Alberto Pimenta leitor sui generis de português em Heidelberg, estavam na verdade "metidas nisso". Em dois blocos de notas, as meninas e eu anotámos observações dos mirones que viriam a aparecer no livro Homo Sapiens. O acontecimento, noticiado no parisiense Libération (Libé para os fiéis), serviu de base às reflexões de Alberto Pimenta e à minha pseudocientífica e parodicamente erudita homenagem ao «Relatório a uma Academia», de Kafka, ficção assombrosa em que um macaco, trazido de África numa jaula, decide aprender a beber aguardente, a escarrar, cuspir e fumar cachimbo como os homens para que o libertem da jaula. Na sua quase-humanidade é exibido em teatros de variedades e sociedades científicas, incluindo a Academia.

Almeida Faria, in & etc - Prolegómenos a uma editora {efémera, catálogo e bibliografia}, coordenação editorial de Paulo da Costa Domingos, Livraria Letra Livre, Biblioteca Nacional de Portugal, Fevereiro de 2017, pp. 49- 50.

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