terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

PERDER O ESQUECIMENTO


A hipótese de um Deus enganador configura-se cada vez mais verosímil. Desbravado o caminho da pós-humanidade, apanhado o ser na rede da pós-verdade, o homem surge aos olhos do artista como uma espécie de cadáver que caberá à arte autopsiar em aula de anatomia. O quadro de Rembrandt anunciou a actualidade como um oráculo, embora aí ainda tenhamos corpo de carne o osso. No futuro, será apenas memória registada num vastíssimo depósito de combinações: palavras e sons, sons e imagens, imagens e cheiros, cheiros e texturas, texturas e palavras… Enfim, memórias. Fragmentos representativos de uma realidade cuja natureza é já a sua falsidade enquanto raiz do autêntico. Um depósito de logros, por assim dizer. Símbolos que combinados com outros símbolos formam representações. A lição de anatomia terá então como objecto anatómico uma representação identitária, pode ser um diário, uma qualquer página numa qualquer rede social, um vastíssimo número de fotografias e de filmes caseiros que terão já ultrapassado a imagem de si para se estabelecerem como o si mesmo, númeno, a essência por detrás da aparência. Dicotomia, aliás, entretanto desfeita. Porque num futuro muito próximo ninguém saberá distinguir aparência de essência, será tudo mera representação. No teatro teremos então a verdade, assim como na poesia a mentira terá os dias contados. Fingir equivalerá a respirar, pelo que os processos de transfiguração artística estarão muito mais ligados ao facto do que à imaginação.


O cinema documental de Chris Marker (n. 1921 – m. 2012) antecipa esse futuro aproveitando-se da noção de jogo. Em Level Five (1997) um homem e uma mulher, ausentes um do outro, ligam-se através de um jogo de estratégia cujo objectivo é a reconstituição da batalha de Okinawa. Ela refere-se-lhe como se ele não existisse, fala para uma câmara. Ele, em voz off, refere-se a ela no final como se estivesse a falar de um fantasma. A relação entre ambos é tão lúdica como a que se estabelece entre nós e as personagens. Afinal quem nos fala? E de onde? De que tempo? De que realidade? De que vida? De que morte? Pode alguém ser tão adorável como uma imagem? questiona ela, enquanto reconstrói a partir da estrutura do jogo pedaços da sua própria existência. Ele apaixonou-se por uma imagem e colocou uma mulher no lugar da imagem, colocou-a a ela. A via não é a do idealismo tradicional, a imagem não surge enquanto modelo, já que surge da vida e não de uma ideia. É esta a direcção do cinema de Marker, da vida para a ideia. Não o inverso. E assim temos que entre um jogo de estratégia e a realidade histórica realiza-se o autêntico, em ambos é a perda, a derrota, a paradoxal relação do homem com a derrota que emerge como uma imagem poderosa, indestrutível.


Os jogos de estratégia são feitos para ganhar batalhas perdidas, tal como os suicídios em massa na batalha de Okinawa. A batalha estava perdida para quem caísse na mão do inimigo, o suicídio era o nível derradeiro de um jogo com a morte de premeio. O sucesso equivale ao fracasso. Não será também este o enigma estabelecido por Sans soleil (1983)? A viagem no espaço, mais uma vez com o Japão em fundo, tem na sua origem a força de uma imagem inaugural: três crianças islandesas, representação da felicidade. O poder da Natureza equivale aí ao poder do Tempo, tal como na paisagem desértica de Cabo Verde. Se o Tempo cura feridas? Não. O Tempo tudo arrasa, tudo deixa em ferida, ruína. A história do filme resulta, aliás, de uma intensa reflexão histórica acerca do poder da memória. Há uma cena a destacar-se das demais, a cena do abate de uma girafa. Um primeiro tiro atordoa-a, um segundo atravessa-a de um lado ao outro, levando-a a esvair-se em sangue até por fim tombar. Um terceiro tiro fatal, na cabeça, retira-lhe a vida. E o sofrimento. O plano final mostra-nos dois abutres a comerem-lhe os olhos. É esse órgão directamente ligado à visão, princípio de todo o cinema, de toda a arte visual, que é questionado. A impossibilidade da memória equivale à impossibilidade da História, o cinema é um documento que busca o reconforto melancólico de uma imagem originária.


Teatro de sombras, este cinema de pendor etnográfico com intuitos documentais. O que aqui se documenta não é tanto o facto como é a reflexão sobre o facto, partindo da vida, da realidade, da História. Mesmo quando surge no formato de ficção científica. A curta-metragem La jetée (1962) é hoje considerada uma obra-prima do género. Muito por causa, suponho, do seu processo de montagem. Em La jetée o movimento das imagens não corresponde ao de um filme convencional. O movimento, aqui, é sugerido como quem folheia um álbum de fotografias ou de banda desenhada. O movimento das imagens está na sua relação com o texto. Num cenário pós-apocalíptico, o que resta da humanidade sobrevive em túneis onde são levadas a cabo experiências com o intuito de fazerem sobreviver a humanidade num plano extraterritorial e "extratemporal": o plano da memória. Um homem é escolhido para viajar através do tempo nas suas memórias. A escolha recai sobre ele por viver obcecado com uma imagem da infância. Esta obsessão com as imagens, com o poder da imagem, percorre os filmes de Marker paralelamente a uma meditação profunda sobre a relação da memória com o passado. Será possível recuperar o passado? Reconstituí-lo? Não será a própria fixação do presente uma forma de recuperação do passado? Afinal, uma imagem gravada hoje não será no futuro um pedaço de passado em estado de conservação? A inocência cósmica ambicionada sobreviverá então nesse pedaço de história porventura poupado à lava do tempo. A viagem sugerida na ficção de Chris Marker não é outra senão a que o próprio levará a cabo nos seus documentários posteriores, tanto em Sans Soleil como em Level 5. Após muitos casos de homens que perderam a memória, eis o exemplo de um que parece ter perdido o esquecimento…

1 comentário:

InfinitoZero disse...

Linda reflexão. Muito bom, Obrigado.