A hipótese de um Deus enganador configura-se cada vez
mais verosímil. Desbravado o caminho da pós-humanidade, apanhado o ser na rede
da pós-verdade, o homem surge aos olhos do artista como uma espécie de cadáver
que caberá à arte autopsiar em aula de anatomia. O quadro de Rembrandt anunciou
a actualidade como um oráculo, embora aí ainda tenhamos corpo de carne o osso.
No futuro, será apenas memória registada num vastíssimo depósito de combinações:
palavras e sons, sons e imagens, imagens e cheiros, cheiros e texturas,
texturas e palavras… Enfim, memórias. Fragmentos representativos de uma
realidade cuja natureza é já a sua falsidade enquanto raiz do autêntico. Um
depósito de logros, por assim dizer. Símbolos que combinados com outros
símbolos formam representações. A lição de anatomia terá então como objecto
anatómico uma representação identitária, pode ser um diário, uma qualquer
página numa qualquer rede social, um vastíssimo número de fotografias e de
filmes caseiros que terão já ultrapassado a imagem de si para se estabelecerem
como o si mesmo, númeno, a essência por detrás da aparência. Dicotomia,
aliás, entretanto desfeita. Porque num futuro muito próximo ninguém saberá distinguir
aparência de essência, será tudo mera representação. No teatro teremos então a
verdade, assim como na poesia a mentira terá os dias contados. Fingir
equivalerá a respirar, pelo que os processos de transfiguração artística
estarão muito mais ligados ao facto do que à imaginação.
O cinema documental de Chris Marker (n. 1921 – m. 2012) antecipa esse futuro aproveitando-se da noção de jogo. Em Level Five (1997) um homem e uma
mulher, ausentes um do outro, ligam-se através de um jogo de estratégia cujo
objectivo é a reconstituição da batalha de Okinawa. Ela refere-se-lhe como se
ele não existisse, fala para uma câmara. Ele, em voz off, refere-se a ela no
final como se estivesse a falar de um fantasma. A relação entre ambos é tão
lúdica como a que se estabelece entre nós e as personagens. Afinal quem nos
fala? E de onde? De que tempo? De que realidade? De que vida? De que morte? Pode
alguém ser tão adorável como uma imagem? — questiona ela, enquanto
reconstrói a partir da estrutura do jogo pedaços da sua própria existência. Ele
apaixonou-se por uma imagem e colocou uma mulher no lugar da imagem, colocou-a
a ela. A via não é a do idealismo tradicional, a imagem não surge enquanto modelo, já que surge
da vida e não de uma ideia. É esta a direcção do cinema de Marker, da vida para
a ideia. Não o inverso. E assim temos que entre um jogo de estratégia e a realidade
histórica realiza-se o autêntico, em ambos é a perda, a derrota, a paradoxal
relação do homem com a derrota que emerge como uma imagem poderosa,
indestrutível.
Os jogos de estratégia são feitos para ganhar batalhas
perdidas, tal como os suicídios em massa na batalha de Okinawa. A batalha
estava perdida para quem caísse na mão do inimigo, o suicídio era o nível derradeiro de um jogo com a morte de premeio. O sucesso equivale ao fracasso. Não será também este o enigma estabelecido
por Sans soleil (1983)? A viagem no espaço, mais uma vez com o Japão em fundo, tem
na sua origem a força de uma imagem inaugural: três crianças islandesas,
representação da felicidade. O poder da Natureza equivale aí ao poder
do Tempo, tal como na paisagem desértica de Cabo Verde. Se o Tempo cura
feridas? Não. O Tempo tudo arrasa, tudo deixa em ferida, ruína. A história do
filme resulta, aliás, de uma intensa reflexão histórica acerca do poder da
memória. Há uma cena a destacar-se das demais, a cena do abate de uma girafa. Um
primeiro tiro atordoa-a, um segundo atravessa-a de um lado ao outro, levando-a
a esvair-se em sangue até por fim tombar. Um terceiro tiro fatal, na cabeça,
retira-lhe a vida. E o sofrimento. O plano final mostra-nos dois abutres a
comerem-lhe os olhos. É esse órgão directamente ligado à visão, princípio de
todo o cinema, de toda a arte visual, que é questionado. A impossibilidade da
memória equivale à impossibilidade da História, o cinema é um documento que
busca o reconforto melancólico de uma imagem originária.
Teatro de sombras, este cinema de pendor etnográfico com
intuitos documentais. O que aqui se documenta não é tanto o facto como é a reflexão
sobre o facto, partindo da vida, da realidade, da História. Mesmo quando
surge no formato de ficção científica. A curta-metragem La jetée (1962) é hoje
considerada uma obra-prima do género. Muito por causa, suponho, do seu processo de
montagem. Em La jetée o movimento das imagens não corresponde ao de um filme
convencional. O movimento, aqui, é sugerido como quem folheia um álbum de
fotografias ou de banda desenhada. O movimento das imagens está na sua relação
com o texto. Num cenário pós-apocalíptico, o que resta da humanidade sobrevive
em túneis onde são levadas a cabo experiências com o intuito de fazerem
sobreviver a humanidade num plano extraterritorial e "extratemporal": o plano da
memória. Um homem é escolhido para viajar através do tempo nas suas memórias. A
escolha recai sobre ele por viver obcecado com uma imagem da infância. Esta
obsessão com as imagens, com o poder da imagem, percorre os filmes de Marker
paralelamente a uma meditação profunda sobre a relação da memória com o
passado. Será possível recuperar o passado? Reconstituí-lo? Não será a própria
fixação do presente uma forma de recuperação do passado? Afinal, uma imagem
gravada hoje não será no futuro um pedaço de passado em estado de conservação? A
inocência cósmica ambicionada sobreviverá então nesse pedaço de história
porventura poupado à lava do tempo. A viagem sugerida na ficção de Chris Marker não é outra senão a que o próprio levará a cabo nos
seus documentários posteriores, tanto em Sans Soleil como em Level 5. Após
muitos casos de homens que perderam a memória, eis o exemplo de um que parece
ter perdido o esquecimento…
1 comentário:
Linda reflexão. Muito bom, Obrigado.
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