terça-feira, 27 de março de 2018

AUSENTES-PRESENTES


Apercebo-me da composição numa peça de Carlos Alberto Machado (n. 1954) intitulada 5 Cervejas Para Virgílio (& etc, Junho de 2009), diálogo a 5 tempos com a obra e a pessoa de Virgílio Martinho (n. 1928 – m. 1994). Apresentado como pertencente «ao agrupamento surrealista-abjeccionista», Martinho surge na História da Literatura Portuguesa enquanto autor de «peças de alegoria concentracionária». Na obra de Machado ele mesmo pode ser entendido como um ausente-presente, condição dúplice para quem mantenha inscrita na memória certa forma de estar e ser. A voz do narrador alterna com a sua própria voz (imaginária? reproduzida?), enquanto outras figuras desfilam no diálogo como peças de um puzzle narrativo onde várias identidades se justapõem. Talvez não seja exacto considerar dúplice a condição do ausente-presente. A agregação dos opostos apaga essa duplicidade, torna uno o que era duplo. O estar presente estando ausente será antes a condição misteriosa da voz que ecoa pela memória, nos textos, num espaço/tempo próprio e singular. Talvez por isso Carlos Alberto Machado dê o nome de tempos ao que poderíamos dar o nome de actos. Num primeiro tempo, as memórias de infância, o pai, a mãe, a experiência de uma paixão exorcismada e a sentença marcante do escritor: «E quando as palavras enfraquecerem dentro de nós haveremos de morrer de morte definitiva» (p. 11). Será errado antever aqui uma declarada confiança na força vitalizante das palavras? A palavra é o corpo do ausente-presente, a palavra feita imagem, resquício de voz no imo da memória, pensamento que resiste ao estômago do tempo, o esquecimento. Sofia, a prostituta, pela ironia do nome poderá também ser entendida como uma alegoria do saber:
SOFIA Olhas-me como se eu fosse morrer!
VIRGÍLIO E não vais?
Esta consciência irredimível da morte é o campo de batalha de todo pensamento, terreno a partir do qual surdem e no qual tombam crenças, máximas, teses, teorias, teoremas. Não é assim desde sempre? Já noutra peça do autor o problema de colocava. Em Restos. Interiores. (Edição do autor, Dezembro de 2002) três mulheres enlutadas recordam os amantes desaparecidos. «Agora é preciso esquecer, esquecer-te» (p. 8), diz a primeira. «Vou cortar os meus cabelos. Uma parte deles irá com o teu corpo em busca da eternidade» (p. 12), diz a segunda. «Dar um nome às coisas é criá-las. Preciso de dar-lhes um nome para sentir que aconteceu alguma coisa. Uma verdade» (p. 14), diz a terceira. Debatendo-se com a memória, desesperando de eternidade, protegendo o ser num nome, o luto destas mulheres presentifica a ausência, recupera para um estado porventura fantasmagórico, mas vivo, o ser daqueles a quem a morte provocou separação sem determinar ausência. Os mortos permanecem no interior dos vivos. Alguém se ausenta porque morre ou se distancia, de certo modo nós próprios nos ausentamos de nós com o passar dos anos. O que é a memória da infância perdida senão uma prova dessa ausência, desse processo de ausentar-se de si mesmo? Mas a morte, a distância, o passado, não delimitam o corpo do ser. Os presos de 5 Cervejas Para o Virgílio indicam outra forma de ausência: «Da rua vem silêncio. Como se a cidade dormisse ou se tivesse ausentado» (p. 29). Há uma diferença entre a aparência (como se) e a realidade, uma diferença ténue para quem, como os presos, esteja separado pela força dessa cidade que se imagina na clausura de uma cela. Caso apreciássemos metafísica, podíamos estabelecer aqui um paralelo entre a cela e o corpo. O corpo é a cela que nos separa do outro, que torna o outro ausente. Mas a palavra recoloca-nos em presença de, a palavra tem esse poder de tornar ausente-presente o que, de outro modo, seria tão-somente perda. Como não apreciamos metafísica, sentimo-nos mais tentados a estabelecer uma relação entre palavra e corpo. O próprio corpo é uma palavra que, para todos os efeitos, se forma no interior do corpo. É também esta a condição do militante resistente, escondido, exilado, isolado, como a palavra corpo no interior do corpo.
No prefácio a Aquitanta (Edição do autor, Fevereiro de 2003), Manuel de Freitas (n. 1972) sublinhou com pertinência esta relação: «Aquitanta, breve “monólogo teatral” de Carlos Alberto Machado, confronta-nos implacavelmente com esse estranho limite em que corpo(s) e palavra(s) se indistinguem no luto provisório de um palco» (p. 5). Nesse drama-poema (poema dramático?) a mulher que fala/pensa/recorda mantém uma relação de proximidade com o seu interlocutor ausente-presente. E diz: «O esquecimento é a verdadeira morte» (p. 10). Tal como nas outras peças agora convocadas, esta ideia da memória como elemento que dá vida pode ser pensada por oposição ao esquecimento como princípio da «morte definitiva». A determinada altura, a mulher que fala em Aquitanta recorda a mãe: «Só sentias a sua presença invisível. Mesmo distante esteve sempre entre nós» (p. 15). Novamente a ausência-presença é uma marca que fortalece nas personagens situações de desamparo e de solidão. Porque, apesar de serem vivas as palavras incorporadas na memória, ou, talvez, a memória de palavras, faltam-lhes membros. O corpo imaterial de que são feitas está incompleto. O toque não é corpo a corpo, o cheiro deixa de ser um estímulo para passar a ser um esforço da imaginação, a matéria como que se dissolve numa substância que o tempo se encarregará de deformar. «A verdade? Talvez os mortos a saibam…», diz Virgílio. Ao mesmo tempo que insiste numa condição última que, afinal, é a daquele que escreve: «inventar a porra da vida». Que outra coisa será o teatro senão tornar ausente-presente a vida num palco onde possa esta ser representada?  

Sem comentários: