Apercebo-me da composição numa peça de Carlos Alberto
Machado (n. 1954) intitulada 5 Cervejas Para Virgílio (& etc, Junho de
2009), diálogo a 5 tempos com a obra e a pessoa de Virgílio Martinho (n. 1928 –
m. 1994). Apresentado como pertencente «ao agrupamento
surrealista-abjeccionista», Martinho surge na História da Literatura Portuguesa
enquanto autor de «peças de alegoria concentracionária». Na obra de Machado ele
mesmo pode ser entendido como um ausente-presente, condição dúplice para quem
mantenha inscrita na memória certa forma de estar e ser. A voz do narrador alterna
com a sua própria voz (imaginária? reproduzida?), enquanto outras figuras
desfilam no diálogo como peças de um puzzle narrativo onde várias identidades
se justapõem. Talvez não seja exacto considerar dúplice a condição do
ausente-presente. A agregação dos opostos apaga essa duplicidade, torna uno o
que era duplo. O estar presente estando ausente será antes a condição
misteriosa da voz que ecoa pela memória, nos textos, num espaço/tempo próprio e
singular. Talvez por isso Carlos Alberto Machado dê o nome de tempos ao que
poderíamos dar o nome de actos. Num primeiro tempo, as memórias de infância, o
pai, a mãe, a experiência de uma paixão exorcismada e a sentença marcante do
escritor: «E quando as palavras enfraquecerem dentro de nós haveremos de morrer
de morte definitiva» (p. 11). Será errado antever aqui uma declarada confiança
na força vitalizante das palavras? A palavra é o corpo do ausente-presente, a
palavra feita imagem, resquício de voz no imo da memória, pensamento que resiste
ao estômago do tempo, o esquecimento. Sofia, a prostituta, pela ironia do nome
poderá também ser entendida como uma alegoria do saber:
SOFIA Olhas-me como se eu fosse morrer!
VIRGÍLIO E não vais?
Esta consciência irredimível da morte é o campo de
batalha de todo pensamento, terreno a partir do qual surdem e no qual tombam
crenças, máximas, teses, teorias, teoremas. Não é assim desde sempre? Já noutra
peça do autor o problema de colocava. Em Restos. Interiores. (Edição do autor, Dezembro
de 2002) três mulheres enlutadas recordam os amantes desaparecidos. «Agora é
preciso esquecer, esquecer-te» (p. 8), diz a primeira. «Vou cortar os meus
cabelos. Uma parte deles irá com o teu corpo em busca da eternidade» (p. 12),
diz a segunda. «Dar um nome às coisas é criá-las. Preciso de dar-lhes um nome
para sentir que aconteceu alguma coisa. Uma verdade» (p. 14), diz a terceira.
Debatendo-se com a memória, desesperando de eternidade, protegendo o ser num
nome, o luto destas mulheres presentifica a ausência, recupera para um estado
porventura fantasmagórico, mas vivo, o ser daqueles a quem a morte provocou separação
sem determinar ausência. Os mortos permanecem no interior dos vivos. Alguém se
ausenta porque morre ou se distancia, de certo modo nós próprios nos ausentamos
de nós com o passar dos anos. O que é a memória da infância perdida senão uma
prova dessa ausência, desse processo de ausentar-se de si mesmo? Mas a morte, a
distância, o passado, não delimitam o corpo do ser. Os presos de 5 Cervejas
Para o Virgílio indicam outra forma de ausência: «Da rua vem silêncio. Como se
a cidade dormisse ou se tivesse ausentado» (p. 29). Há uma diferença entre a
aparência (como se) e a realidade, uma diferença ténue para quem, como os
presos, esteja separado pela força dessa cidade que se imagina na clausura de
uma cela. Caso apreciássemos metafísica, podíamos estabelecer aqui um paralelo
entre a cela e o corpo. O corpo é a cela que nos separa do outro, que torna o
outro ausente. Mas a palavra recoloca-nos em presença de, a palavra tem esse
poder de tornar ausente-presente o que, de outro modo, seria tão-somente perda.
Como não apreciamos metafísica, sentimo-nos mais tentados a estabelecer uma
relação entre palavra e corpo. O próprio corpo é uma palavra que, para todos os
efeitos, se forma no interior do corpo. É também esta a condição do militante
resistente, escondido, exilado, isolado, como a palavra corpo no interior do
corpo.
No prefácio a Aquitanta (Edição do autor, Fevereiro de 2003), Manuel de
Freitas (n. 1972) sublinhou com pertinência esta relação: «Aquitanta, breve “monólogo
teatral” de Carlos Alberto Machado, confronta-nos implacavelmente com esse
estranho limite em que corpo(s) e palavra(s) se indistinguem no luto provisório
de um palco» (p. 5). Nesse drama-poema (poema dramático?) a mulher que
fala/pensa/recorda mantém uma relação de proximidade com o seu interlocutor
ausente-presente. E diz: «O esquecimento é a verdadeira morte» (p. 10). Tal
como nas outras peças agora convocadas, esta ideia da memória como elemento que
dá vida pode ser pensada por oposição ao esquecimento como princípio da «morte
definitiva». A determinada altura, a mulher que fala em Aquitanta recorda a
mãe: «Só sentias a sua presença invisível. Mesmo distante esteve sempre entre
nós» (p. 15). Novamente a ausência-presença é uma marca que fortalece nas
personagens situações de desamparo e de solidão. Porque, apesar de serem vivas as palavras incorporadas na memória, ou, talvez, a memória de palavras,
faltam-lhes membros. O corpo imaterial de que são feitas está incompleto. O toque não é corpo a corpo, o
cheiro deixa de ser um estímulo para passar a ser um esforço da imaginação, a
matéria como que se dissolve numa substância que o tempo se encarregará de
deformar. «A verdade? Talvez os mortos a saibam…», diz Virgílio. Ao mesmo tempo
que insiste numa condição última que, afinal, é a daquele que escreve:
«inventar a porra da vida». Que outra coisa será o teatro senão tornar
ausente-presente a vida num palco onde possa esta ser representada?
Sem comentários:
Enviar um comentário