O escritor húngaro Sándor Márai (n. 1900 – m. 1989) ia
completar 89 anos de idade quando resolveu dar um tiro na cabeça. Tinha perdido
a mulher há três anos, assim como o filho adoptivo, vivia isolado, contaminado
pelo cancro. Deixara a Hungria em 1948, insatisfeito com o regime comunista que
então dominava o país. Viveu algum tempo em Itália até se fixar definitivamente
em San Diego, nos EUA. Apesar de escrever originalmente em húngaro, foi durante
muito tempo proibido no seu país. Só alguns anos depois de falecer, começou a sua obra a ser mundialmente traduzida e reconhecida como uma das mais estimulantes
do séc. XX. As velas ardem até ao fim (Publicações Dom Quixote, 1.ª edição,
Outubro de 2001) data de 1942. A Europa estava mergulhada na Segunda Grande
Guerra, com o Reino da Hungria a fazer parte do eixo que apoiava a estratégia
nazi. Uma das características geralmente associadas ao livro de Márai é a
nostalgia da multiculturalidade do Império Austro-Húngaro, aflorada em brevíssimas passagens que parecem indiferentes ao corpo do
texto. É bom lembrar, no entanto, que as duas personagens centrais do livro
provêm de contextos socioculturais diversos. O general Henrik é rico e nobre,
vive num palácio com Nini, a velha ama que o criou, filha do carteiro da
aldeia, fiel companhia de uma vida solitária. «Havia vinte anos que não
recebiam visitas» (p. 13), quando Konrád, amigo de infância, resolve reaparecer
passados 41 anos de uma ausência intrigante. No colégio que frequentaram havia
rapazes provenientes dos palácios da Boémia, dos solares da Morávia, dos
castelos tiroleses e dos palacetes de caça estirianos, das casas de província
húngaras, «rapazes eslavos de testa estreita, em cujo sangue se misturavam
todas as características humanas do Império» (p. 29). É neste ambiente
multicultural que germinará a amizade entre dois seres bem distintos. «Tinham dez anos quando se conheceram» (p. 29). Konrád era filho de um funcionário
público da Galícia com título de barão. A mãe era polaca, de origens humilíssimas.
O tema da amizade entre Henrik e Konrád é a dimensão mais evidente do romance, o
qual desenvolve amiúde meditações de carácter axiológico sobre esse valor que
tanto tem ocupado a filosofia ao longo de milénios de especulação metafísica. Apesar
das alusões platónicas e kantianas, a referência mais evidente será a Ética a
Nicómaco, de Aristóteles, segundo a qual um homem ama o seu próprio bem ao amar
um amigo. Mas há uma outra dimensão neste romance que extravasa a questão da
amizade. Grande parte do livro é um longo monólogo de Henrik sobre aquilo que
terá levado Konrád a desaparecer durante 41 anos. O monólogo ocorre durante o
jantar do reencontro, pautado pelo ritmo das velas a arderem até ao fim. Esta
marcação do tempo, altamente musical, remete também para algo que começa a
separar Henrik de Konrád quando ainda eram jovens. O primeiro foi educado para a espada, é um homem do real, um militar, a sua relação com o
mundo apoia-se nos factos, estes são a carne da realidade. Mas por detrás da
realidade há algo mais, há uma verdade que lhe escapa. Ele sabe disso e é isso
que o frustra. Konrád, ao contrário de Henrik, refugia-se na música. A música é
uma linguagem perigosa, dois corpos comunicam através da música de um modo simbólico
que Henrik não entende, mas Konrád desenvolve.
«A realidade não é a verdade. (…)
A realidade é apenas um pormenor» (p. 54), diz Henrik a Nini quando esta o
questiona sobre as vantagens do reencontro com Konrád passados 41 anos. Estão
agora na casa dos 70, a juventude passou, algo os separou e Henrik quer saber o
quê. Não lhe importam os factos, esses ele sabe-os, não lhe importa a
realidade, essa ele conhece. «Diz-me, o que há lá no íntimo?» —
pergunta Henrik a Konrád. Mas este praticamente não fala, limita-se a ouvir. Os
leitores saberão apenas a versão da história segundo Henrik, e a versão da
história deixa-nos no limbo entre os factos da realidade e uma intimidade
impossível de decifrar. «Não se trata de me defender, porque quero saber a
verdade, e quem procura a verdade, só pode começar a busca dentro de si» (p.
101). A verdade parece inacessível, está na morte. Pelo meio, o amor a uma
mulher, o tema da traição, a fuga, uma eventual tentativa de assassinato, acusações
de cobardia esgrimindo exemplos de coragem íntima, desinteressada, sacrificial,
a memória de alguém que já não existe, ou existe de certa maneira como elo
entre os dois, a vingança…
«Tudo o que outrora eram factos, tornam-se em pó e
cinzas» (p. 137). A verdade escapa aos factos porque a verdade é muito mais
profunda do que a realidade, esta observa-se à superfície, não determinada a
amizade entre dois homens. «Li e reli Platão» (p. 81), diz o general. Nota-se. Ele
sabe o que é uma ideia. Só a realidade se compreende, as ideias são modelos inalcançáveis
até à hora da morte, até à hora da verdade. «Sim, um dia chega o reconhecimento
da verdade: e isso significa a velhice e a morte» (p. 142). Muito mais do que
uma história de amizade, As velas ardem até ao fim é a partitura a partir da
qual ouvimos uma espécie de música que nos oferece simbolicamente um pouco de
verdade. A amizade é o pretexto para escutamos essa música composta por Sándor
Márai… em solidão. Ficamos sem saber por que voltou Konrád. Qual a sua versão
dos acontecimentos? O que o fez regressar? Qual a sua verdade? Tudo o que
sabemos é-nos dito por Henrik. Konrád terá fugido por cobardia. Mas fugiu de
quê? E em que é que a coragem lhe falhou, se é que falhou? Poderá a morte desfazer
o mistério?
4 comentários:
Li há alguns anos este livro. Adorei. Vou relê-lo.
Foi dos livros mais bonitos que li. É um dos livros da minha vida.
Foi um dos livros mais bonitos que li. É um dos livros da minha vida.
lê hush hush
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