segunda-feira, 23 de abril de 2018

AS VELAS ARDEM ATÉ AO FIM


O escritor húngaro Sándor Márai (n. 1900 – m. 1989) ia completar 89 anos de idade quando resolveu dar um tiro na cabeça. Tinha perdido a mulher há três anos, assim como o filho adoptivo, vivia isolado, contaminado pelo cancro. Deixara a Hungria em 1948, insatisfeito com o regime comunista que então dominava o país. Viveu algum tempo em Itália até se fixar definitivamente em San Diego, nos EUA. Apesar de escrever originalmente em húngaro, foi durante muito tempo proibido no seu país. Só alguns anos depois de falecer, começou a sua obra a ser mundialmente traduzida e reconhecida como uma das mais estimulantes do séc. XX. As velas ardem até ao fim (Publicações Dom Quixote, 1.ª edição, Outubro de 2001) data de 1942. A Europa estava mergulhada na Segunda Grande Guerra, com o Reino da Hungria a fazer parte do eixo que apoiava a estratégia nazi. Uma das características geralmente associadas ao livro de Márai é a nostalgia da multiculturalidade do Império Austro-Húngaro, aflorada em brevíssimas passagens que parecem indiferentes ao corpo do texto. É bom lembrar, no entanto, que as duas personagens centrais do livro provêm de contextos socioculturais diversos. O general Henrik é rico e nobre, vive num palácio com Nini, a velha ama que o criou, filha do carteiro da aldeia, fiel companhia de uma vida solitária. «Havia vinte anos que não recebiam visitas» (p. 13), quando Konrád, amigo de infância, resolve reaparecer passados 41 anos de uma ausência intrigante. No colégio que frequentaram havia rapazes provenientes dos palácios da Boémia, dos solares da Morávia, dos castelos tiroleses e dos palacetes de caça estirianos, das casas de província húngaras, «rapazes eslavos de testa estreita, em cujo sangue se misturavam todas as características humanas do Império» (p. 29). É neste ambiente multicultural que germinará a amizade entre dois seres bem distintos. «Tinham dez anos quando se conheceram» (p. 29). Konrád era filho de um funcionário público da Galícia com título de barão. A mãe era polaca, de origens humilíssimas. 
   O tema da amizade entre Henrik e Konrád é a dimensão mais evidente do romance, o qual desenvolve amiúde meditações de carácter axiológico sobre esse valor que tanto tem ocupado a filosofia ao longo de milénios de especulação metafísica. Apesar das alusões platónicas e kantianas, a referência mais evidente será a Ética a Nicómaco, de Aristóteles, segundo a qual um homem ama o seu próprio bem ao amar um amigo. Mas há uma outra dimensão neste romance que extravasa a questão da amizade. Grande parte do livro é um longo monólogo de Henrik sobre aquilo que terá levado Konrád a desaparecer durante 41 anos. O monólogo ocorre durante o jantar do reencontro, pautado pelo ritmo das velas a arderem até ao fim. Esta marcação do tempo, altamente musical, remete também para algo que começa a separar Henrik de Konrád quando ainda eram jovens. O primeiro foi educado para a espada, é um homem do real, um militar, a sua relação com o mundo apoia-se nos factos, estes são a carne da realidade. Mas por detrás da realidade há algo mais, há uma verdade que lhe escapa. Ele sabe disso e é isso que o frustra. Konrád, ao contrário de Henrik, refugia-se na música. A música é uma linguagem perigosa, dois corpos comunicam através da música de um modo simbólico que Henrik não entende, mas Konrád desenvolve. 
   «A realidade não é a verdade. (…) A realidade é apenas um pormenor» (p. 54), diz Henrik a Nini quando esta o questiona sobre as vantagens do reencontro com Konrád passados 41 anos. Estão agora na casa dos 70, a juventude passou, algo os separou e Henrik quer saber o quê. Não lhe importam os factos, esses ele sabe-os, não lhe importa a realidade, essa ele conhece. «Diz-me, o que há lá no íntimo?» pergunta Henrik a Konrád. Mas este praticamente não fala, limita-se a ouvir. Os leitores saberão apenas a versão da história segundo Henrik, e a versão da história deixa-nos no limbo entre os factos da realidade e uma intimidade impossível de decifrar. «Não se trata de me defender, porque quero saber a verdade, e quem procura a verdade, só pode começar a busca dentro de si» (p. 101). A verdade parece inacessível, está na morte. Pelo meio, o amor a uma mulher, o tema da traição, a fuga, uma eventual tentativa de assassinato, acusações de cobardia esgrimindo exemplos de coragem íntima, desinteressada, sacrificial, a memória de alguém que já não existe, ou existe de certa maneira como elo entre os dois, a vingança… 
   «Tudo o que outrora eram factos, tornam-se em pó e cinzas» (p. 137). A verdade escapa aos factos porque a verdade é muito mais profunda do que a realidade, esta observa-se à superfície, não determinada a amizade entre dois homens. «Li e reli Platão» (p. 81), diz o general. Nota-se. Ele sabe o que é uma ideia. Só a realidade se compreende, as ideias são modelos inalcançáveis até à hora da morte, até à hora da verdade. «Sim, um dia chega o reconhecimento da verdade: e isso significa a velhice e a morte» (p. 142). Muito mais do que uma história de amizade, As velas ardem até ao fim é a partitura a partir da qual ouvimos uma espécie de música que nos oferece simbolicamente um pouco de verdade. A amizade é o pretexto para escutamos essa música composta por Sándor Márai… em solidão. Ficamos sem saber por que voltou Konrád. Qual a sua versão dos acontecimentos? O que o fez regressar? Qual a sua verdade? Tudo o que sabemos é-nos dito por Henrik. Konrád terá fugido por cobardia. Mas fugiu de quê? E em que é que a coragem lhe falhou, se é que falhou? Poderá a morte desfazer o mistério?

4 comentários:

Anónimo disse...

Li há alguns anos este livro. Adorei. Vou relê-lo.

Unknown disse...

Foi dos livros mais bonitos que li. É um dos livros da minha vida.

Unknown disse...

Foi um dos livros mais bonitos que li. É um dos livros da minha vida.

Anónimo disse...

lê hush hush