terça-feira, 18 de setembro de 2018

DO INÍCIO, OUTRA VEZ


I

Foi esta portanto a furtiva impureza que herdámos
sem saber como, este espaço, este canto assim vago,
estes espasmos desmaiados, este tempo, este mundo,
estas arestas, estes pedaços de terra, estes dramas
de inércia e dentes pouco aguçados, os mesmos
rostos rasos ao chão, estes remorsos, estes cafés
onde nos recompomos das derrotas, este modo
de despejar os cinzeiros, estas tardes, este aclarar
da garganta para nada e os rebuçados amarelos
e doces para a tosse, a lucidez, os oscilantes sons
das campainhas, a satisfação ardente dos líquidos
raros, a gradação de intensidade das lâmpadas,
a acidez dos risos, os envelopes bem dobrados,
e os dias sempre os dias outra vez os dias.

II

Certas flores, as mais esfarrapadas.
O vento também. Ou já o disse?
E coisas que ainda não têm nome.
Aquela impressão quando os olhos fecham.
Arriscaria dizer que é de sempre
Este tumulto no pestanejar.

Um dia terei feito as contas à vida. 
Mas julgo que muito se passou atrás das costas.

III

Não nos lembramos bem das canções.
Mas fizemos nosso o seu sussurro obscuro

- será pouco mais que a nossa obrigação.

Em tempos a questão era desmurmurar
os sentimentos, enroscar bem a língua
para saborear todo o amargo e o dormente
e o lento e o cuspo e o abrasivo e o asco.
As gengivas em sangue de tanto remoer.
Chega de tanto.

IV

Tanto mais que nos coube
também a metrologia de coisas instáveis
e de utilidade discutível.

Por exemplo, as nesgas, a palidez granulada da alvorada,
os vários modos de encostar o rosto à almofada e assim
sobreviver ao exílio de vez em quando rindo,
os ímans - ou, mais exactamente, o ponto
indiscernível em que a atracção dos pólos
sossega, por instantes, ou melhor,
em que se fixa no equilíbrio dos contrários
- o recorte dos panos atravessados pela luz
ou as saídas necessariamente de emergência
de um certo quarto onde ouvimos os passos
e nos juntámos à multidão. Os gemidos.

Pois coube-nos a observação das multidões,
também a densidade das esponjas ou o chocalhar
luminoso da face enamorada. Outros elementos,
divisões, categorias.

O verbo que descreve
a antecipação do andamento
que se segue, esse

deslizante verbo

V

A nós coube-nos a desmesura, e as coisas
que nela aprenderemos a incomensurar.

Mais uma razão para termos nos dedos
pontas tão estreitas e tão pouco sábias,
e pálpebras assim, efervescentes.
E tudo isto está ainda por estudar.

VI

Este entrever, este antegosto,
este rosto assim
amachucado entre tantos,
risos até, súbitos
súbitos tambores e sustos,
estes estrondos extenuados
de tão pouco.

Que e fodam os densos mistérios
que a razão nos foi deixando
sobre inumeráveis secretárias.

Temos muito com que nos entreter,
outras penumbras.

VII

Ou nem isso.

Lá se escovam os triunfos anteriores,
meio desbotados, e se reviram os olhos
a custo. Lá se abrem as gavetas
e se colam as visões a cuspo.

Foram-se amontoando futuros.

O que se poderia talvez traduzir
da seguinte forma:

Há zonas de indistinção onde tudo
se joga em mecanismos
de rigor murmurado e eriçado ânimo.
Dobras, vincos.

VIII

Mas talvez nisto haja subtileza a mais.

E que tal assim:
Eis o mundo.
Eis-nos.
Não chegámos a dizer ao que vínhamos.

Somos muitos e por enquanto dispersos.

Antes de mais
e antes do resto.

IX

Coube-nos começar, mas não do princípio.
Coube-nos amarfanhar todos os mapas
(Ainda que os tenhamos desenhado
a canivete, ao de leve, na palma das mãos).

Pelo que o cicatrizar nem sempre ajuda.
Há nisto uma certa poesia, não muito subtil.
E sempre dá algum estremecimento aos apertos de mão.

É mais ranger de dentes que outra coisa,
lançamento de guitas, cordas, fitas
de toda a espécie e alguns ganchos em metal
(de que não se conhece bem o propósito)
para sítios um pouco escuros e adversos.

Quem é que se lembra ainda
para que servem por exemplo os ponteiros
desencontrados nesta armadura de latão?
E por aí fora.

X

Convirá acentuar o quanto é ainda o início.
Um início: a par do riso, a mais discreta,
a mais comum das utopias.


Miguel Cardoso (n. 1976), in Que Se Diga Que Vi Como A Faca Corta (Mariposa Azual, Junho de 2010). «O seu primeiro livro, Que se Diga que Vi como a Faca Corta, remete logo no título para a órbita de Herberto Helder. Todavia, os evidentes pontos de contacto com a escrita do autor de A Faca Não Corta o Fogo – poemas longos; imagens fortes; linguagem ao mesmo tempo obscura e exaltante, densa, visceral – nunca o reduzem à condição de epígono». (José Mário Silva, LER) «Os seus poemas – quase sempre longos, feitos de acumulações, derivas, apartes, coloquialismos, interrupções – são paredes verbais a ir de encontro ao leitor para o derrubar. São uma coisa física». (José Mário Silva, Expresso) «Esta é uma poesia política, que não negligencia o investimento formal, mas que disponibiliza nos seus versos um relatório fragmentário e eficaz de signos reconhecíveis. Estes, embora não sejam representações excessivamente denotativas de certo estado de coisas, formulam quadros de referência que situam os poemas de Miguel Cardoso numa certa forma de entender o seu próprio tempo». (Hugo Pinto Santos, Público)

Sem comentários: