DOS INCHADOS
I.
Como um balão, redondo de nada
ou de ar, mas nem para flutuar, só
para inventar volume, aí te cresces
de abdómen para atraíres.
Estimas a ventilação, as meiguices,
a atenção ao gesto teu.
Seco, consegues forjar abrigos debaixo
de raízes, de pedras, sob a folhagem,
onde existas imperceptível.
Emergindo ao crepúsculo, quando outros acusam
cansaço, apenas então, activa e voraz,
a língua como um chicote submete
escaravelhos, moscas, pequenas ossadas.
Porém, não tens dentes.
E és forçado a tudo incluir, para teu alívio.
Tua tarefa cumprida em florestas coníferas,
na densa treva para a camuflagem.
Vejo em ti grotesco e suavidade,
não sei de onde me virá tal impressão.
Bateu-me pela primeira vez a tua imagem
no cinema. Eras tragado aos poucos.
O tempo parecia diferente e ficou-me o resíduo
desse acontecimento.
Mas também a voragem púrpura de quem
te abocanhava não mais me deixou.
Estava escuro na sala, as certezas ausentes,
o sentimento de alarme a trepar-nos as pernas,
fazíamos silêncio. Ainda escuto: «consegue forjar
abrigos debaixo de raízes, de pedras, sob a folhagem,
onde exista imperceptível».
II.
Em pequena, diziam-me que não podias deixar
de inspirar. Mesmo com risco de veneno,
mais querias a agonia do que deixar de acumular
ar nos teus pulmões.
Continuo sem saber se haverá verdade nesse conto,
gosto de pensar que sim.
Porque a tua aparência inflamada
teria aí um motivo mais favorável à arte.
Nunca esqueci uma noite cálida, quando primeira vez te vi
movente a custo numa estrada
e alguém soltou creolina,
projectando morte sobre a tua placidez.
No fundo, compreendi então que a fealdade ofende mais do que a culpa,
e que o receio faz das sombras inofensivas o palco do infortúnio.
Ninguém tomou sublime a tua forma,
apenas a julgaram atípica por não acompanhar as medidas
com que folgamos no universo.
E, contudo, busco essa estranheza
sem concessões e absolutamente real.
Talvez pelas horas passadas junto à argila alaranjada.
Talvez pela figueira que chorei sem consolo num inverno.
Talvez por causa dessa noite desalumiada,
talvez pela infância daí para sempre na minha lembrança,
talvez pela brutalidade por mim reconhecida:
quando enrolavam cobras com estacas
ou atiravam os ovos para fora do ninho,
quando estudavam os limites de um gafanhoto,
a raiz de peónia, a resistência das pinhas,
quando assim era e havia em tudo isso singeleza.
Naquele instante, apenas uma certeza.
Sentindo aquele odor forte, percebi que estava condenada
a lembrar-te e aos pequenos que se atiravam a ti com maior cobiça.
Diante de mim estava uma espécie de mistério sem fundura.
Deixei-me estar quieta, confusa sobre a ideia que me atravessava.
Somente me tocou uma leve intuição. Uma brisa remota, algures.
III.
Era no estio que melhor achávamos a tua espécie.
Um som de reco-reco no tecido da noite sufocando-nos
ainda mais, enchendo-nos a insónia,
com o vibrato das cigarras.
Rebolávamos nas camas,
bebíamos a água pousada na mesa-de-cabeceira
e olhávamos as graduações de obscuridade nas paredes.
Certo é que essa tua toada feia nos fazia companhia,
querida, no seu modo curioso de abafar os restantes terrores.
Eras como que uma claridade negra de presença.
A tua fisionomia invocada pelo eco e nós, na calma,
interrogávamo-nos sobre o deus que teria engendrado essas linhas,
essas vozes e essas dermes ásperas.
Era o grande deus das formas, meditávamos, o dos muitos olhos,
aquele que inventa o impensável e sabe que é verdade.
De tal modo que havia criado também o morcego e o sardão.
Não podia haver outra razão para que tantas patas desiguais
tocassem terreno e trouxessem andante a expectativa de vencer a derrocada.
E as tuas tão brutais quanto a plasticidade de um antúrio.
Ainda não nos assustávamos convenientemente
com a televisão, com a colher, com o copo, com o frigorífico, com o fósforo.
Havia familiar instalado nos olhos.
Que tu persistisses ali na lagoa, tu e os teus confrades,
isso é que era inabitual.
Afligia a presença constante de uma coisa
que respira furtiva e tem apetites
e mexe por sua própria vontade.
Nessa experiência do susto e do espanto,
tecíamos sem saber as imagens.
E por vezes, quando o sono se torna cerrado,
ainda acordo em sobressalto acatando a tua rouquidão.
Elisabete Marques, in Animais de Sangue Frio, Língua Morta, Abril de 2017, pp. 61-66. Outro poema da autora foi outrora partilhado aqui. Muito diferente do livro de estreia, Animais de Sangue Frio
reúne 9 trípticos (3x3) que, à semelhança deste, acolhem personagens de índole aparentemente mitológica, criaturas fantásticas, estranhas, enigmáticas, seres de um mundo
crepuscular. Os animais de sangue frio são, por regra, répteis, anfíbios, mas
aqui parecem transcender essa condição biológica para penetrarem uma outra, mais
simbólica. O sapo que se adivinha no poema já não é apenas um sapo,
dissecado na sua forma e essência. Ele é também aquilo que inspira, certa
condição mitológica, mais ou menos pessoalizada num contexto de vivências
singulares, o seu significado resulta de uma relação estabelecida com quem o
evoca. Príncipe sapo, sapo agoirento, ao mesmo tempo suave e grotesco. É nesse limbo algures entre a realidade e a fantasia que melhor se
entende este bestiário, conjunto de poemas sob a forma de pinturas onde a bestealidade
exibe tanto espanto quanto inspira comiseração. Livro estranho, repleto de
seres estranhos, convocando-nos para lugares estranhos: «Esta questão de lugar,
/ o lugar sempre outro e atravessado e esquivo» (p. 41). Sobre o primeiro livro da autora deixei aqui uma breve leitura.
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