quarta-feira, 19 de setembro de 2018

MIL E OUTRAS NOITES


Questionaram-me ontem sobre livros novos de poesia portuguesa. Recomendáveis, acrescente-se. Não fiz caso do novos, conceito a que nunca fui atreito, saindo-me de imediato em forma de declaração de princípios: “sou suspeito para falar, porque gosto muito do Eduardo Guerra Carneiro”. Gosto muito não seria o termo, e a suspeição vem apenas de há anos suplicar por, digamos assim, uma certa dignificação da poesia de um dos mais tristemente esquecidos e maltratados dos nossos poetas. Para quem comigo falava, Mil e Outras Noites (Língua Morta, Maio de 2018) não entrava nas contas. Afinal, Eduardo Guerra Carneiro (n. 1942 – m. 2004) nada tem de novo.
Titubeei, fui lembrando este e aquele, poucos, os que me ocorreram. Mas o que eu devia ter reforçado era isto: Mil e Outras Noites, de Eduardo Guerra Carneiro, é dos melhores livros de poesia portuguesa que podíamos desejar. E é novo, completamente novo, mais novo do que a maioria dos novos pode alguma vez suspeitar, ainda que, para mal dos seus pecados, tenha o poeta já nascido velho. Isto é, sábio do seu ofício. Não será por acaso que a páginas tantas, no belíssimo poema em prosa Vendo Bem: Jardins, o escutamos dizer: «Talvez me encontrem num jardim nocturno de qualquer cidade ao norte da Europa. Peregrinações de jovem poeta já cansado» (p. 108). Este «jovem poeta já cansado» tudo fez para que da sua poesia fosse afastada certa imagem de ser-se poeta, e essa é uma das maiores dádivas do seu labor. O poeta não tem idade, muito menos sobre ele pesam as luzes da novidade. Talvez isto explique o descaso de que foi vítima até ao momento de pôr termo à vida, não tendo deixado de o ser até que agora alguém invista na recuperação do seu espólio. Em certo sentido, ainda bem. Também por isso se manterá novo, sempre novo, porque desconhecido, por imprescindível de conhecer.
Da selecção levada a cabo por Miguel Filipe Mochila ficou de fora o primeiro dos seus livros, O Perfil da Estátua (1961), sem que qualquer nota nos explique porquê. Preferiu o editor recuperar para prefácio e posfácio dois textos de um dos seus mais generosos editores. Do primeiro, sublinhamos o tom antiacadémico em concordância com o objecto de análise. Texto datado de 1978, para o primeiro de vários livros de Eduardo Guerra Carneiro publicados na & etc de Vítor Silva Tavares: Como Quem Não Quer a Coisa. Respigado para posfácio, um texto anteriormente publicado na Telhados de Vidro aquando do desaparecimento abrupto do poeta. Dele aí se diz, como sobre Van Gogh disse Artaud, ter sido um «suicidado da sociedade». Quanto a letras, “preferiu (…) o orgulho do isolamento à confraria das «famílias poéticas»”. Paradoxalmente, é de uma poesia aberta ao outro como poucas há que melhor nos chega esta aqui antologiada. Um outro, diga-se, que raramente cabe nos poemas, marginalizado, esquecido, posto de lado como praga social.
Esta linha de relacionamento foi fruto de um contacto com o campo, com as aldeias, com as cidades de província onde Guerra Carneiro colhe grande parte da sua paisagem mais natural. A sua confraria está nas tascas, nas ruas, nos arrabaldes de uma solidão que se carrega como a uma cruz. Livre-se o leitor de entrever aqui qualquer forma de bucolismo, já que «A província é triste, abafada, bafienta, com poeira nas ruas. A província é um deserto parado e povoado de carros de aluguer» (p. 65). Era assim em 1970, no livro Isto Anda Tudo Ligado, não deixou de assim ser até aos nossos dias. Pelo menos onde resta província. Tal como da cidade dificilmente faríamos um retrato diferente daquele que nos foi deixado pelo poeta no mesmo livro: «suja, cinzenta, amarelecida, sem um parque, nem mesmo um lago» (p. 44). A quem advenha cenário distinto para o país do nosso tempo, sugerimos

OS CAFÉS

Nos cafés desenham os paisanos, vulgares
senhores de bagaço e genebra, raspando o mármore
entre folhas do jornal. Morrem os cafés
com seu bilhar, bengaleiro e escarrador. Música
de rádio ainda sintoniza a serradura e os vidros
baços quando chove. Recordo cafés
da província, ou da cidade grande,
destruídos por ímpias criaturas do plástico.
Já não servem cevada ou Eduardinho e o açúcar
não vem no açucareiro. Alguns ainda assinam
os jornais, o cobre limpam e pagam
aos paquetes. Autorizam cauteleiros, a caixa
do engraxador, a rapariga das violetas. Violentam
os cafés aqueles da usura, ratos do cimento.

Aí têm o nosso tempo, personificado n’«aqueles da usura, ratos do cimento», num poema Contra a Corrente (1988). A tender frequentemente para a prosa, esta poesia socorre-se da memória numa luta inglória contra o esquecimento. Talvez seja essa característica o que nela sempre mais nos comoveu. Isso e não se negar à comoção, à ternura, ao sentimento, de não fugir às palavras e de se questionar a si mesma, jamais perdendo de vista o encontro que as palavras tornam possível. Tendencialmente melancólica, o que nela por vezes sobrevém de alegria e gozo é ternura (leia-se o excelente poema da página 37). Isto afirmamos sem qualquer intenção psicologizante, já que no limite sobram imagens de sufoco íntimo, perturbadoras, claustrofóbicas: «A revolta dentro deste quarto» (p. 50) ou «A loucura invadindo o quarto» (p. 83) ou a linguagem corrosiva das duas evocações de Émile Henry: «E, de repente, vontade de partir e partir, escacar tudo, ó meu intelectual de merda!, meu borrabotas lamechas!, meu sentimental barato!» (p. 123) Primando pela contenção verbal, eis uma poesia cujas erupções momentâneas não resvalam para um mero oportunismo sensacionalista ou para foguetórios gratuitos.
A antologia Mil e Outras Noites é um dos grandes livros de poesia publicados entre nós no ano corrente. Recoloca-nos na presença de um extraordinário poeta, faz com a sua poesia o que a sua poesia sempre fez: combater o esquecimento. «É um desafio permanente esta aventura da escrita», disse-nos num poema em prosa do livro Dama de Copas (1981). Desafio permanente é também a aventura da leitura, mais ainda quando se trata de um poeta que nos oferece a lonjura mostrando-nos o que temos mais perto, por vezes debaixo do nariz, e por distracção, ambição ou desmesura, ignoramos. Já mais para o fim, no livro A Noiva das Astúrias (2001), surge tudo muito bem resumido na ideia de um dever voltar ao Outro. Este, em maiúsculas, porque, afinal, é aquele sem o qual o sujeito poético faria qualquer sentido. Quanto ao mais ficou declarado em É assim Que Se Faz A História (1973):

Em resumo: de um estilo de vida mais
do que palavras. Reparo: escrevo
como quem se justifica. A idade
segredou-me o sentido. Escrevo
com medo de ser tarde. Multiplicando
as letras pelas ruas. A toda a hora
escrevo. Sem escrever.

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