sábado, 10 de novembro de 2018

AS PALAVRAS ANDANTES


Vale a pena conhecer José Francisco Borges, um dos mais reconhecidos praticantes da literatura de cordel no Brasil. Literatura de cordel ou folhetos, como por cá diríamos, através dos quais se fixou a tradição oral. De cordel por serem os folhetos em exposição pendurados por cordéis. J. Borges, como é conhecido entre o meio artístico, ganhou também fama como xilogravurista, isto é, autor de gravuras em madeira. Na década de 1970, o escritor uruguaio Eduardo Galeano (n. 1940 – m. 2015) desafiou-o a “ilustrar” as histórias recolhidas no volume que veio a ser publicado com o título As Palavras Andantes (Antígona, Junho de 2018). As gravuras de J. Borges reproduzem monstros, dragões, serpentes, figuras mitológicas, ancestrais, parecem vindas de um tempo ancestral, pré-histórico, misterioso, casando lindamente com estas histórias de Galeano. As Palavras Andantes é um livro diferente dos outros de Galeano que a Antígona publicou até agora, quer pela profusão de imagens, quer pela componente imagética das próprias histórias. Estas têm praticamente todas um cunho alegórico que nos transporta para tempos imemoriais, são pequenas cosmologias provindas de um universo sul-americano onde os deuses da terra se confundem com os do céu. Metamorfoses do Belzebu, mitos indígenas, personagens folclóricas, misturam-se em contextos quase sempre fantasiosos, reforçando a ideia de que «Pouca graça tem escrever o que se vive» (p. 25). Neste caso, o que se vive surge nos ínterins como que pautando um possível balanceamento entre «o daquém e de dalém» (p. 31) dos contos. Galeano recorre a lendas antigas, a delírios, sonhos, faz descer à terra as transmutações do mundo celeste, ressuscita os mortos e enterra os vivos com a mesma naturalidade de um milagreiro, sem nunca fechar as janelas desta moradia incomum à realidade envolvente.  Casos de almas trocadas, bruxarias, gravidezes improváveis, fenómenos xamânicos, manifestações de espectros, mitos criacionistas, fábulas e feerias, fantasmagorias, exílios e desterros ultraterrestres, maldições, superstições, dão corpo a uma mitologia galeana enraizada na História das Américas que nunca perde de vista o aforismo e a poesia das palavras:

JANELA SOBRE O CORPO

A Igreja diz: O corpo é uma culpa.
A ciência diz: O corpo é uma máquina.
A publicidade diz: O corpo é um negócio.
O corpo diz: Eu sou uma festa.

Alguns dos contos mais longos podem parecer meros divertimentos, como a História do Homem Que Queria Parir ou a História do Sobredotado, Suas Façanhas e Seu Assombroso Destino, mas delas sempre guardamos uma imagem forte sobre os destinos do mundo e da humanidade. Como não raras vezes sucede na literatura que se encarregou de fixar as tradições orais dos povos indígenas, os desenlaces raramente são óbvios, apelam ao espanto e à reflexão, sugerem caminhos para um pensamento destemido, capaz de percorrer o irracional sem se sentir obrigado a proverbializá-lo, antes paradoxializando a relação da linguagem com a realidade. Do indigente que se mascarou de Diabo para ter sucesso na vida, o desenlace é mais moralista:

   Felicindo tentou tirar a máscara com as unhas, experimentou com água e com aguardente, com detergente e com esfregão de arame.
   E até hoje continua a querer arrancar essa cara que o espelho lhe devolve diariamente.
   Ele consola-se sabendo que esse é o problema de quase toda a gente.

Não é mal que não seja comum, de facto. Mas esta é uma das raras ocasiões em que o remate se fecha sobre si mesmo. Na maioria das vezes, os textos são como as gravuras de J. Borges. Deixam-nos no limbo, a pensar se haverá algo de real naquelas figuras monstruosas, e se não será típico da realidade a monstruosidade que melhor a transfigura. A morte que vive é, afinal, o esqueleto que cada um de nós transporta pela vida, o mal, o medo, circulam no sangue como reflexos num charco, «poderes e mistérios» (p. 219) são próprios tanto das personagens como dos homens, sobre ambos pesará a mesma pedra, ou seja, a mesma perda:

HISTÓRIA DA PÁSSARA QUE PERDEU UMA PATA

   Os filhos já tinham quebrado os ovos e, chilreando, espreitavam no ninho. A Tenquita voou à procura de comida para eles. Era Inverno em Colchagua e a neve gelou-lhe uma pata. A pássara protestou:
   Porque me deixaste coxa?
   E a neve:
   Porque o sol me derrete.
   E a Tenquita queixou-se ao sol, e o sol:
   Porque a névoa me tapa.
   E a névoa:
   Porque o vento me arrasta.
   E o vento:
   Porque a parede me detém.
   E a parede:
   Porque o rato me esburaca.
   E o rato:
   Porque o gato me come.
   E o gato:
   Porque o cão me persegue.
   E o cão:
   Porque o pau me bate.
   E o pau:
   Porque o fogo me queima.
   E o fogo:
   Porque a água me apaga.
   E a água:
   Porque a vaca me bebe.
   E a vaca:
   Porque a faca me mata.
   E a faca:
   Porque o homem me afia.
   E o homem:
   Porque Deus me criou.
   Andando aos tombos, a Tenquita cantou em busca de Deus. E Deus ouviu-a. Então, ela perguntou-lhe porque fez o homem que afia a faca que mata a vaca que bebe a água que apaga o fogo que queima o pau que bate no cão que persegue o gato que come o rato que esburaca a parede que detém o vento que arrasta a névoa que tapa o sol que derrete a neve que me gelou a pata.
   Ai, Tenquita — disse Deus. — Eu tive de criar o homem para que o homem me criasse a mim.

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