Vale a pena conhecer José Francisco Borges, um dos mais
reconhecidos praticantes da literatura de cordel no Brasil. Literatura de
cordel ou folhetos, como por cá diríamos, através dos quais se fixou a tradição
oral. De cordel por serem os folhetos em exposição pendurados por cordéis. J.
Borges, como é conhecido entre o meio artístico, ganhou também fama como
xilogravurista, isto é, autor de gravuras em madeira. Na década de 1970, o
escritor uruguaio Eduardo Galeano (n. 1940 – m. 2015) desafiou-o a “ilustrar”
as histórias recolhidas no volume que veio a ser publicado com o título As
Palavras Andantes (Antígona, Junho de 2018). As gravuras de J. Borges
reproduzem monstros, dragões, serpentes, figuras mitológicas, ancestrais,
parecem vindas de um tempo ancestral, pré-histórico, misterioso, casando
lindamente com estas histórias de Galeano. As Palavras Andantes é um livro
diferente dos outros de Galeano que a Antígona publicou até agora, quer pela
profusão de imagens, quer pela componente imagética das próprias histórias. Estas
têm praticamente todas um cunho alegórico que nos transporta para tempos
imemoriais, são pequenas cosmologias provindas de um universo sul-americano
onde os deuses da terra se confundem com os do céu. Metamorfoses do Belzebu,
mitos indígenas, personagens folclóricas, misturam-se em contextos quase sempre
fantasiosos, reforçando a ideia de que «Pouca graça tem escrever o
que se vive» (p. 25). Neste caso, o que se vive surge nos ínterins como que
pautando um possível balanceamento entre «o daquém e de dalém» (p. 31) dos
contos. Galeano recorre a lendas antigas, a delírios, sonhos, faz descer à
terra as transmutações do mundo celeste, ressuscita os mortos e enterra os
vivos com a mesma naturalidade de um milagreiro, sem nunca fechar as janelas
desta moradia incomum à realidade envolvente. Casos de almas trocadas, bruxarias, gravidezes
improváveis, fenómenos xamânicos, manifestações de espectros, mitos
criacionistas, fábulas e feerias, fantasmagorias, exílios e desterros ultraterrestres,
maldições, superstições, dão corpo a uma mitologia galeana enraizada na
História das Américas que nunca perde de vista o aforismo e a poesia das
palavras:
JANELA SOBRE O CORPO
A Igreja diz: O corpo é uma culpa.
A ciência diz: O corpo é uma máquina.
A publicidade diz: O corpo é um negócio.
O corpo diz: Eu sou uma festa.
Alguns dos contos mais longos podem parecer meros
divertimentos, como a História do Homem Que Queria Parir ou a História do Sobredotado,
Suas Façanhas e Seu Assombroso Destino, mas delas sempre guardamos uma imagem
forte sobre os destinos do mundo e da humanidade. Como não raras vezes sucede
na literatura que se encarregou de fixar as tradições orais dos povos
indígenas, os desenlaces raramente são óbvios, apelam ao espanto e à reflexão,
sugerem caminhos para um pensamento destemido, capaz de percorrer o irracional
sem se sentir obrigado a proverbializá-lo, antes paradoxializando a relação da
linguagem com a realidade. Do indigente que se mascarou de Diabo para ter
sucesso na vida, o desenlace é mais moralista:
Felicindo tentou
tirar a máscara com as unhas, experimentou com água e com aguardente, com
detergente e com esfregão de arame.
E até hoje
continua a querer arrancar essa cara que o espelho lhe devolve diariamente.
Ele consola-se
sabendo que esse é o problema de quase toda a gente.
Não é mal que não seja comum, de facto. Mas esta é uma
das raras ocasiões em que o remate se fecha sobre si mesmo. Na maioria das
vezes, os textos são como as gravuras de J. Borges. Deixam-nos no limbo, a
pensar se haverá algo de real naquelas figuras monstruosas, e se não será
típico da realidade a monstruosidade que melhor a transfigura. A morte que vive
é, afinal, o esqueleto que cada um de nós transporta pela vida, o mal, o medo, circulam no sangue como reflexos num charco, «poderes e mistérios» (p. 219) são
próprios tanto das personagens como dos homens, sobre ambos pesará a mesma
pedra, ou seja, a mesma perda:
HISTÓRIA DA PÁSSARA QUE PERDEU UMA PATA
Os filhos já
tinham quebrado os ovos e, chilreando, espreitavam no ninho. A Tenquita voou à procura
de comida para eles. Era Inverno em Colchagua e a neve gelou-lhe uma pata. A
pássara protestou:
—
Porque me deixaste coxa?
E a neve:
— Porque o
sol me derrete.
E a Tenquita queixou-se
ao sol, e o sol:
— Porque a névoa me tapa.
E a névoa:
— Porque o vento me
arrasta.
E o vento:
— Porque a parede me
detém.
E a parede:
— Porque o rato me
esburaca.
E o rato:
— Porque o gato me come.
E o gato:
— Porque o cão me
persegue.
E o cão:
— Porque o pau me bate.
E o pau:
— Porque o fogo me
queima.
E o fogo:
— Porque a água me apaga.
E a água:
— Porque a vaca me bebe.
E a vaca:
— Porque a faca me mata.
E a faca:
— Porque o homem me afia.
E o homem:
— Porque Deus me criou.
Andando aos tombos, a
Tenquita cantou em busca de Deus. E Deus ouviu-a. Então, ela perguntou-lhe
porque fez o homem que afia a faca que mata a vaca que bebe a água que apaga o
fogo que queima o pau que bate no cão que persegue o gato que come o rato que
esburaca a parede que detém o vento que arrasta a névoa que tapa o sol que
derrete a neve que me gelou a pata.
— Ai, Tenquita — disse
Deus. — Eu tive de criar o homem para que o homem me criasse a mim.
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