No ensaio A Longa Vida da Metáfora: Uma Abordagem da
Shoah (1988), George Steiner (n. 1929) questiona-se acerca da possibilidade de
uma linguagem adequada à conceptualização de Auschwitz. O problema surge após o
famigerado e radical apelo de Theodor Adorno (n. 1903 - m. 1969), segundo o qual a eloquência da
linguagem poética seria obscena face ao terror do Holocausto. Steiner vai mais
além na formulação do problema: «Relativamente ao discurso sobre Deus: que
formas pode tomar, que plausibilidade pode mobilizar, depois dos campos de
morte?» (in As Artes do Sentido, trad. Ricardo Gil Soeiro, Relógio D’Água,
Fevereiro de 2017). Podemos interrogar-nos: de onde nasceu Deus senão da
experiência do desespero? Da mesma forma, talvez faça sentido pensarmos que a
poesia não terá surgido de outra fonte. O «universo-Auschwitz», neste sentido,
não nos envia apenas para o homem anterior à linguagem, ele reafirma a
bestialidade humana como inerente à própria linguagem. Auschwitz, mas não só, é
a lógica da barbárie levada a cabo no seio da civilização. Steiner resolve o
problema elegendo Paul Celan (n. 1920 – m. 1970) como «o único poeta (…) ao
nível (…) de Auschwitz», por ter escrito poemas «da Shoah» «que não são
susceptíveis de paráfrase crítica», poemas que dão uso a uma «linguagem para
além de si própria». Já não está em causa o silêncio de Deus ou a possibilidade
de o homem conceptualizá-lo através da linguagem poética, mas sim um outro
dizer, porventura inacessível, que questiona Deus a partir da desolação e do
desespero instaurados pela Shoah. A linguagem de Celan é a do abandono, um
abandono reflectido na própria ilógica da linguagem.
Ao recuperar em epígrafe
inicial a célebre frase de Adorno, colocando-a a par de uma outra atribuída a
Rui Chafes —
«A beleza é impossível sem as marcas da morte» —, o poeta Eduardo Quina (n. ?)
mostra-se interessado nesta discussão acerca da possibilidade da
poesia depois ou no decorrer da barbárie, assumindo a posição de que é
precisamente da experiência da barbárie que melhor a poesia se impõe. Maligno
(Cosmorama, Maio de 2018) é um poema-sequência que nos reenvia para os campos
de morte, mas desta feita sem outra experiência que não seja a do
distanciamento histórico: «estão em linha para o depósito final: / bichos em
forma de humano. / a cabeça rapada e uma estrela / que não anuncia deus, mas / uma
criança dentro do / medo» (p. 19). A hipótese da ausência de Deus face à doença
humana, face ao mal, é um dos temas mais fortes deste livro, que ao recuperar
diversas imagens facilmente associáveis ao Holocausto não deixa de nos remeter
para os males da actualidade.
Auschwitz não encerra o mal, representa-o. Os
remates entre parêntesis que percorrem todos os poemas, ao contrário do mote,
que divisa o desenvolvimento do poema, como que abrem uma fenda no tempo e
universalizam o negrume, o abismo, o mal, a perda, a loucura, a devastação, não
deixando de colocar a pergunta fundamental: [o que pode o humano / contra o
ódio do humano?] (p. 49). A poesia de Eduardo Quina insiste nesta reflexão
acerca da possibilidade da poesia manifestando uma crença na renovação do
poético que não se aceita dependente de possíveis concepções do sagrado ou do divino,
preferindo enraizar-se numa consciência da privação que semeia o poema para
matar a fome ao desamparado.
Nestes poemas, a mãe que chora o filho morto, as
«crianças que brincam cegas e sem dor» (p. 24), o homem que «espera que a noite
avance» (p. 20), a velha ajoelhada, são personagens de um tempo universal onde
se pressente a agonia de um deus exangue. O medo, a sombra, a alucinação, o
vazio, o extermínio, o desamparo, o negrume, «a tortura da existência» (p. 22),
convocam a ausência de Deus, a ausência dos seus sinais, para melhor reforçarem
a ideia substancial dessa possibilidade da poesia depois do crime: [a inefável
palavra nada traduz: / estamos mortos e ainda respiramos.] (p. 15)
Há uma
sabedoria final, porém, que invoca o recomeço sob o signo da perda, como uma
insistência no desespero, uma sabedoria que não liberta o homem da doença, pois
essa é-lhe própria como o respirar, mas de algum modo a diagnostica e procura preveni-la.
Se é possível a poesia depois de Auschwitz já não é a questão. A poesia surge
no interior do campo de morte, porque esse não foi extinto, tem outras
características e alargou os muros, está no mal que corre no sangue dos homens
como um vírus do qual também a poesia nasce e contra o qual se rebela.
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